Passada a histeria inicial, a inteligência artificial generativa já não é mais uma novidade. Perdendo seu status de moda passageira, queiramos ou não, ela está dada e assimilada. Na lógica capitalista, reforçada pela retórica publicitária das próprias ferramentas (como analisamos no artigo “A retórica publicitária em torno da IA”, na Revista Dispositiva), sua capacidade de “fazer mais com menos” soou como música às mentes trabalhadoras ávidas por produzir sob a lei do menor esforço intelectual.
Nas salas de aula, a despeito dos pedidos de educadores, crianças, adolescentes e universitários já empregam as suas ferramentas sem qualquer constrangimento. Com sorte, fazem um uso criativo – que também é possível, como pleiteio em Cr(ia)ção – criatividade e inteligência artificial -, conscientes de suas limitações estéticas, éticas e lógicas.
Porém, independentemente de um bom ou mau uso da inteligência artificial generativa, não há ponto de retorno – o que nos convida a refletir sobre seus impactos em um espectro um pouco mais amplo.
Entre o pensamento humano e as ferramentas que historicamente empregamos, há uma relação íntima, como formulou Richard Sennett em O artífice. Conceber uma imagem com um pincel e tinta à óleo é diferente de se criar uma imagem a partir de um mouse em uma tela virtual, por exemplo. As ferramentas conduzem o nosso pensamento, fomentando plasticidades neurais e direcionando nossa sensibilidade criativa. Não seria diferente com a inteligência artificial.
Sendo o prompt a principal interface entre o humano e a máquina, o raciocínio literal é privilegiado em detrimento de um pensamento complexo ou conotativo, pois o usuário deve descrever, com o máximo de detalhes possíveis, a imagem ou o texto que quer receber como resultado. Se o usuário não souber nomear suas referências, ficará a critério da máquina a escolha, a remixagem e o apagamento de suas fontes criativas.
Disso decorre aquele que talvez seja o ponto mais preocupante no que diz respeito à criatividade no contexto da inteligência artificial generativa: a deterioração da pesquisa criativa e da autoria.
O processo criativo, certamente, envolve o uso de referências. Nada se cria do nada. Longe do mito divino, no ato criador, o criativo se vê diante de um caldeirão de textos, imagens, experiências e pensamentos que foi coletando de várias fontes, que ele recorta, cola e remixa como um bricoleur, como João Anzanello Carrascoza propôs a partir do conceito de dialogismo.
Porém, a pesquisa criativa que prescinde das ferramentas de IA é de uma natureza distinta à lógica da máquina. O criativo elabora estratégias próprias de busca. Lê e interpreta referências diversas, mesmo que elas, após a tarefa, não mostrem uma utilidade imediata. Respeita, ou ao menos tem como ímpeto moral respeitar, a autoria daqueles que lhe serviram como base.
A máquina é regida por outros direcionamentos. Suas referências partem de uma varredura estatística e probabilística, apresentando o que surge como mais recorrente diante da demanda. Seu trabalho generativo é pragmático e focado na eficiência e não no dispêndio ou no ócio criativo. Suas apropriações são iconoclastas e ignoram fronteiras jurídicas. O usuário que emprega a IA generativa no trabalho criativo incorpora essa lógica de tabela.
A ChatGPTização da criatividade é a reprodução dessa lógica maquínica, em que o processo criativo é marcado por uma pesquisa criativa viciada em referências e despreocupada com autoria. Se observamos ao redor, já parece haver indícios desse transbordamento quando vemos estudantes e profissionais chegando a soluções criativas que já nascem pasteurizadas e balizadas pelo senso comum. Ou ainda quando são lançadas campanhas como aquela da Bauducco (e sua “Magia Amarela”, inspirada completamente no projeto AmarElo, de Emicida) que empregam referências diretas e simplesmente as deletam depois, como se autoria não valesse nada mais.
Sobre Renato Gonçalves
Pós-doutorado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e mestre em Culturas Brasileiras pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), o pesquisador trabalha com uma abordagem multidisciplinar que abarca os campos da comunicação, semiótica, psicanálise, filosofia e teoria crítica, para compreender os fenômenos comunicacionais e culturais. Possui graduação em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) (2012). Autor dos livros “Cr(ia)ção – Criatividade e inteligência artificial” (2023), “Marina Lima: Fullgás – O livro do disco” (2022), “Eros pornografado: homoerotismo masculino e pornografia amadora” (2022) e “Nós duas, as representações LGBT na canção brasileira” (2016), livro premiado pelo Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo (ProAC n 26/2015).