Os fatos (na sua ocorrência) se eternizam, embora fragmentariamente, através das imagens técnicas. A fotografia, pioneira destas formas de informação e comunicação, interrompe ilusoriamente o curso da vida, um fragmento visual do mundo congelado e paralisado, sem antes nem depois. Resta, apenas, o fragmento a ser contextualizado e interpretado. No entanto, um fragmento visual e estático do real tem vida própria, autônoma, pode estar em todos os lugares, é perpétuo, se retroalimenta pelos usos e interpretações que serão objeto ao longo de seu percurso eterno. Falamos da realidade do fato e da realidade da fotografia: uma segunda realidade como temos repetido há décadas. Aqui nos referimos à uma representação construída técnica, política e ideologicamente, que será alçada à condição de documento.
Uma das características fundantes da fotografia é a de transformar o fato num espetáculo de uma única imagem, que transmite, e seguirá transmitindo incessantemente, a aparência do fato em escala planetária. Isso nos leva a refletir sobre o episódio do atentado que sofreu o candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, no último sábado, 13 de julho.
Do público restrito presente ao comício à plateia universal, todos assistiram ao que se passava naqueles poucos segundos de tempo. Um choque online, diante da cena do atentado. O disparo de uma bala e os disparos das câmeras nos instantes seguintes registram a dramática cena pela fotografia e pelos vídeos, ainda durante o seu decorrer. E o momento se torna eterno.
Vários fotógrafos entram em ação. Evan Vucci experiente e afamado fotógrafo da Associated Press registra em detalhe os gestos de Trump assim como a atitude rápida e clássica – e tão familiar pelo cinema – dos agentes do Serviço Secreto norte-americano. Um momento que se torna um momento histórico. A imagem, aparentemente, pode se tornar símbolo da campanha presidencial.
Tudo se sucede rapidamente. Trump, de vítima do tiro, que por um triz não o mata, se posiciona como herói e age como tal, uma representação que lhe é conhecida. Quando posto de pé e totalmente cercado pelos agentes da segurança, ele tem plena consciência do que ocorria e imediatamente domina cena, ergue o braço, punho cerrado, olhar de ódio, enquanto grita repetidas vezes “Fight! Fight! Fight!”, e o sangue da orelha ferida escorrendo pelo rosto. O ex-presidente escapa milagrosamente, um bombeiro morre e duas outras pessoas são seriamente feridas pelos projéteis de uma R-15 (o “Fuzil da América”) operada por um solitário atirador de 20 anos, Thomas Matthew Crooks. Tudo se desenrola sob um magnífico céu azul com a bandeira tremulando ao fundo. O cenário se completa.
Em poucos minutos, as agências de notícias, a imprensa e as mídias estariam repercutindo o fato em todas as latitudes. Assistimos todos à representação de uma representação: uma imagem que permite múltiplas interpretações. O trajeto da bala pode, talvez, direcionar Donald Trump à Casa Branca. A foto de Vucci lhe renderá, possivelmente, mais um Pulitzer. A imagem, segunda realidade, sobreviverá ao fato.
Boris Kossoy
Fotógrafo, teórico e historiador da fotografia, é arquiteto pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie, mestre e doutor pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, livre-docente e professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É professor do Programa de Pós-Graduação da mesma instituição e coordenador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Imagem e Memória – NEIIM/USP. Obras de sua autoria integram as coleções permanentes do Museum of Modern Art (NY), Metropolitan Museum of Art (NY), Bibliothèque Nacionale de France (Paris), Centro de la Imagen (México DF), Museu de Arte Moderna (SP), Pinacoteca do Estado (SP) entre outras instituições.