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BBB22 e por que representatividade importa

Por Clotilde Perez

16/02/2022 08h00

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Nasci em 1972. Como toda criança que cresceu nos anos 1970/1980, aprendi na TV que ser gay era ser ridículo. E que eu, portanto, era ridículo. Que ser efeminado, ter a caligrafia caprichada, andar com meninas ou simplesmente não gostar de futebol eram motivos mais do que justificáveis para eu ser apontado nos corredores do colégio e virar alvo de piadas, comentários maldosos, apelidos infames e mais três ou quatro “pisas” gratuitas ao longo da minha vida escolar.

 

Desde essa época, os programas televisivos humorísticos foram sempre recheados de personagens homossexuais interpretados caricaturalmente por atores hétero. Capitão Gay (Jô Soares), Haroldo e Painho (Chico Anysio), Jeca Gay (Moacyr Franco) e Pit Bicha (Tom Cavalcanti) eram apenas alguns desses personagens, que invariavelmente serviam de chacota para a audiência. Nos Trapalhões, Didi Mocó (Renato Aragão) achincalhava qualquer homem menos viril, rotulando-o de “rapaz alegre” e acusando-o desdenhosamente como o bordão: “Esse aí camufla! Ele escamoteia!”. Homofobia recreativa? Check!

 

Por sua vez, travestis e mulheres transgêneras, quando recebiam destaque na grande mídia e, sobretudo, na publicidade, eram tratadas mais como personagens “exóticas” do que como pessoas reais. Eram destituídas de sua humanidade e de seu talento artístico, sendo vistas quase como atrações circenses. No comercial Quase de graça da Bombril (1999), por exemplo, a cantora e atriz Rogéria é tachada ironicamente de “quase mulher ou quase homem” pelo garoto-propaganda da marca. Já na campanha O seu checkcard da Visa Electron (2001), a modelo Roberta Close tem sua identidade questionada pelo vendedor da loja de lingerie, que a chama pelo seu nome civil masculino e, indignado, ainda dispara: “Lamento, mas essa foto não parece com o senhor.” Transfobia recreativa? Check!

 

Mais de dez anos depois, pouco havia mudado no campo publicitário. Em 2012, a cerveja Nova Schin divulgou a sua peça Festa de São João, na qual o suposto humor é construído quando o narrador-sanfoneiro conta que o personagem Marcão Garanhão descobriu que “a sua paixão de noite era Maria e de dia era João”. Em 2013, a agência publicitária Leo Burnett Tailor Made produziu para a fábrica de autopeças Meritor um calendário intitulado The Shemale Calendar, com fotos de modelos transexuais, tendo como legenda: “Se não é original, mais cedo ou mais tarde você sente a diferença”. E já em 2017, a loja de cosméticos Pedaços de Amor veiculou em suas redes sociais e em outdoors a sua campanha para o Dia Internacional da Mulher. Na imagem do anúncio, vemos uma travesti de costas, urinando em pé em um banheiro masculino, sendo envolta pelo slogan “Pirataria é CRIME!”, em letras garrafais.

 

Mais recentemente, algumas empresas passaram a atentar para essas questões e começaram a produzir peças publicitárias mais inclusivas e pró-diversidade sexual. Denominadas de outvertising (out = fora do armário + advertising = publicidade), essas novas propagandas valorizam e visibilizam temáticas e representantes reais da comunidade LGBTQIAP+. Sobretudo em junho, mês da Diversidade, muitas marcas se revestem das cores do arco-íris e promovem ações voltadas para esses consumidores – tudo embalado com uma bela retórica publicitária de celebração e aceitação das diferenças.

 

Não raro, contudo, muitas dessas marcas são, logo em seguida, desmascaradas e acusadas de oportunismo. São flagradas desejando essencialmente abocanhar o cobiçado pink money desse público. Além disso, podemos constatar como muitas dessas campanhas acabam enaltecendo certos tipos de corpos: o homem gay másculo e a mulher lésbica feminina, todos brancos, cisgêneros, esbeltos, instruídos, de classe média/alta, etc. Ou seja, corpos que, no fim das contas, basicamente mimetizam o conhecido modelo cis-heteronormativo da família feliz do comercial de margarina. Na verdade, mais do que propagar um discurso LGBT-friendly no mês de junho, essas empresas devem se preocupar em adotar práticas corporativas cotidianas que efetivamente promovam a inclusão e a diversidade em seu quadro de funcionários, coibindo qualquer forma de preconceito e discriminação em suas políticas internas.

 

Corta então para 2022 e o que vemos agora é uma travesti, dois homens gays e duas mulheres e um homem bissexuais protagonizando a nova edição de um dos programas de maior audiência – e lucratividade – da televisão, o Big Brother Brasil (BBB22). Em plena TV aberta, portanto, estão sendo atualmente discutidos assuntos como o uso correto de pronomes para pessoas trans, mulheres que não precisam ter vagina para se identificar como mulheres, identidade de gênero dos filhos, descoberta da própria sexualidade e decisão de sair do armário, LGBTfobia, violência verbal, a importância do apoio familiar e tantas outras temáticas antes impensáveis naquela clássica grade televisiva nos longínquos anos 1970/1980.

 

Assim, independentemente da inevitável pasteurização e espetacularização de certas pautas e debates, o BBB22 e, indiretamente, as marcas anunciantes acabam desempenhando um papel pedagógico crucial para o letramento sexodiverso de uma grande parcela da população brasileira. Ao naturalizar na telinha a existência de pessoas e corpos LGBTQIAP+ com as mais variadas características étnico-raciais, tipos físicos, condições socioeconômicas, background cultural, etc., o Big Brother se afasta cada vez mais daquele tradicional padrão de programa televisivo cis-heterocentrado. Isto é, daquele programa cujo entretenimento era baseado numa postura abusiva estigmatizante, que frequentemente apelava para o humor chulo homotransfóbico e persecutório em busca do riso fácil da audiência.

 

Em 2022 faço 50 anos. E, depois de meio século de vida, hoje me percebo enormemente feliz e otimista ao saber que os jovens LGBTQIAP+ podem atualmente se sentir representados na TV e se enxergar em personalidades como Linn da Quebrada, Tiago Abravanel, Brunna Gonçalves ou Gil do Vigor (da edição 2021 do BBB), enquanto pessoas de sexualidades e identidades de gênero diversas, sem medo de serem perseguidos e ridicularizados. Agora somos nós os protagonistas no nosso próprio reality show.

 

 

Leo Mozdzenski

Doutor em Comunicação (PPGCOM-UFPE), doutor em Letras/Linguística (PPGL-UFPE) e, atualmente, pós-doutorando em Direitos Humanos (PPGDH-UFPE).

Autor do livro Outvertising: a publicidade fora do armário (Ed. Appris, 2020) e organizador da coletânea Direitos humanos, políticas públicas e mudança social: diálogos e tensionamentos (Ed. Pimenta Cultural, 2020). Membro dos grupos de pesquisa PHiNC (Publicidade Híbrida e Narrativas de Consumo – CNPq/PPGCOM-UFPE) e NUCEPI (Núcleo de Estudos em Compreensão e Produção (Inter) Linguísticas – CNPq/PPGL-PPGDH-UFPE).

Em parceria com a Rede Nacional de Escolas de Governo, ministra cursos de formação e aperfeiçoamento profissional a servidores e agentes públicos, com atividades de treinamento e desenvolvimento técnico nas áreas de comunicação organizacional, redação corporativa, produção e argumentação textual e escrita criativa

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.