Artigo
Cultura do cancelamento. Tema amplamente difundido nas redes sociais, mas que já vem tomando o debate público ampliado e a preocupação de intelectuais de diferentes áreas. Chamar de cultura certamente é um exagero. Cultura pressupõe um conjunto de expressões, manifestações e ritos carregados de sentidos múltiplos, comportamentos e relações que guardam repetição e perenidade, mas também incorporam lentamente o zeitgeist, conferindo identidade aos que comungam e a compartilham. O que estamos vendo, está bem longe desta complexidade. Trata-se de um movimento de agressão que objetiva o apagamento do outro, suas ideias, suas opiniões e o direito inalienável que temos de nos manifestar livremente. Revela uma face nefasta, que evidentemente sempre existiu entre nós, mas que agora ganha projeção incontrolável no enxame das redes. Cancelar, carrega em si, os atos de eliminação, anulação, encerramento, interrupção, suspensão, aniquilamento. Palavra de origem latina cancéllo significa “cobrir com grades”, gradear, riscar, inutilizar. A intenção é de “riscar” mesmo, marcar e cortar e, com isso, fazer desaparecer, impingir sofrimento e obter o recolhimento e o apagamento do outro. Traz caraterísticas do sadismo punitivo e pode ser ainda sintoma de perversão. O cancelamento às vezes se reveste de medida “educativa” e assim, se recobre de crueldade, principalmente quando é evocado a partir de bolhas identitárias radicais, que não querem a dialogia, a evolução do pensamento crítico e a expansão para novas e melhores práticas sociais.
Os casos de “cancelamento” mais midiatizados revelam a intolerância e a incapacidade de alguns em lidar com a diferença. Se não é igual a mim, se não pensa exatamente como eu penso, eu não apenas descarto, como quero anulá-lo e fazê-lo desaparecer, uma pulsão odiosa. E o comportamento da manada errática nas redes transborda, normalmente, sem qualquer ponderação; a fúria que se manifesta no clic, no comentário agressivo, no compartilhamento irresponsável, na inconsequência sobre os efeitos.
A diferença é incômoda, para lidar com ela precisamos nos colocar na posição de ouvintes e de atenção ao outro, e isso dá trabalho. Demanda abertura, diálogo, busca de entendimento, não julgamento, alguma empatia. Em uma sociedade individualista onde muitos acreditaram que “tudo podem” porque “tudo são”, fica bem difícil considerar qualquer possibilidade de dissonância, contraditório ou mesmo a menor divergência. A sociedade positiva, como nas palavras de Chul-Han (2017), no livro “Sociedade da transparência”, leva ao aplanar de tudo a favor do liso, raso, sem relevo, tudo que tem potencialidade de resistência deve ser retirado ou aniquilado. Todos ficamos iguais e entre iguais não há negatividades que “atrapalham”. Claro, a alteridade vem com a diferença e se o outro sou “eu”, “igual a mim”, não há diferença. Mas, se o “outro” não sou “eu”, portanto é um estranho, “eu” cancelo! Simples assim. Mas, há uma perspectiva interessante nos casos brasileiros, que é a rapidez dos cancelamos e descancelamentos em um furor midiático que não encontramos em nossos pares na América Latina ou mesmo em outros continentes. Tal constatação nos abre outro caminho reflexivo que é compreender a força dessas pulsões erráticas se realmente são de eliminação ou se ao contrário, são de promoção.
Mas, há uma constatação inegável, de fato, aceitar o que não compreendemos no outro é algo muito difícil. E mais, enfrentar a negatividade da diferença, impõe lidar com sofrimento, dor, desilusão, em princípio, nada agradável, mas só nos tornamos melhores e fortes se nos demorarmos junto ao negativo, nos debruçarmos diante do outro e de suas diferenças, como afirmou Nietzsche (2019), pois só assim nutrimos e sustentamos o nosso espírito vivo.
Referências
HAN, B. C. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Bauru: Edipro, 2019
Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, Clotilde Perez é titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Ela é fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Ela apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.