A nossa contemporaneidade é marcada por transformações inéditas cujas qualidades não remetem apenas ao âmbito humano e às suas habilidades opinativas. A pandemia, as mudanças climáticas e as contínuas inovações das tecnologias digitais, nos colocam diante de um mundo conectado e, ao mesmo tempo, povoado por entidades-agentes e por outras formas de inteligências com dinâmicas e capacidades próprias.
Este protagonismo dos não-humanos – D. Haraway (2016), B. Latour (2004), T. Morton (2013) – e esta dimensão conectiva – (M. Di Felice, (2020) C. Accoto (2020), L. Floridi(2016)- nos desperta perante um mundo no qual nosso livre arbítrio, nosso poder decisório e as nossas relações estão submetidas e dependentes do agir de outros atores. Nossa condição habitativa deixou o seu formato social (do latim socius) e passou a ser construída através das dinâmicas de relações complexas com os vírus, o clima, o Big data e os algoritmos. Se com a pandemia passamos a habitar um mundo infecto e inseguro, através da Teoria de Gaia, proposta pelo físico J. Lovelock, deixamos de morar num planeta terráqueo para ser parte de um hiper organismo vivo, composto, como todos os demais, por bilhões de outros organismos cuja amplitude vai desde o subsolo até a atmosfera, realizando uma extensão que envolve a inteira circunferência do nosso planeta e no interior da qual existe vida.
O conjunto destas qualitativas mudanças produzem a percepção de um novo tipo de habitar que podemos definir “exotópico”, no qual nossa percepção, nossa experiência e nosso sentir são deslocados para fora de nós (Di Felice, 2009). O protagonismo dos não humanos, sejam estes, vírus, florestas, climas, dados, redes etc. nos tornam coabitantes em um mundo comunicante e interconexo. Deixamos, assim, a polis, placenta segura, povoadas apenas por cidadãos humanos, separados da natureza pelos muros. A transição da cidadania dos humanos para as ecologias das interações em redes hiper complexas está apenas no seu começo e será o horizonte deste terceiro milênio. Trata-se de uma passagem evolutiva que mudará para sempre a nossa ideia de sociedade, estendendo a cidadania aos não humanos e modificando mais uma vez a nossa condição habitativa. Esta transformação é já em ato e em diversas partes do planeta e assume a forma e o nome de “transição ecológica”.
No velho continente, a União Europeia vinculou o maior plano de financiamento de sua história, estimando em 750 bilhões de euros e nomeado de Next Generation, a transição ecológica e digital. Trata-se de um plano estrutural que prevê, além da conversão ecológica da economia, das infraestruturas e das mobilidades de todos seus diversos países, a constituição de uma nova cultura da governança, baseada num novo tipo de contratualidade estendida aos outros habitantes da bioesfera. O plano prevê a redução de 50% das emissões até 2030 e o objetivo de chegar a não produzir mais emissões até 2050, tornando, assim, a Europa o primeiro continente a zero emissões.
Para alcançar tal objetivo em todos os países da União, foi criado um novo tipo de hiper ministério chamado da “transição ecológica” com uma atuação transversal e superior para agir em todos os demais setores. A China já reduziu de 2015 até 2020 em 18,8 % suas emissões de carbono por unidade do PIB e nas deliberações do 14º Plano Quinquenal, de 2021 até 2025, estipulou a meta da neutralidade de emissões de carbônio até 2060.
No novo programa quinquenal chinês são indicados todos os objetivos específicos para a melhoria da eficiência energética do sistema produtivo, da qualidade do ar e das águas e as diversas metas de reflorestação. No documento, os principais setores industriais da China: manufaturas, transportes e consumo, deverão melhorar sua performance ecológica até 2025 para chegar a definitiva mudança sustentável em 2035, ano em que toda a frota chinesa usará somente energia limpa. Além de tais ambiciosas metas estão em construção nas florestas chinesas, cidades a impacto zero que reúnem projetos experimentais de arquitetos do mundo inteiro.
Nos Estados Unidos, o plano da nova administração está baseado no lema “Build back better” cujo objetivo é reconversão sustentável das infraestruturas e da mobilidade. A mensagem é que Biden reconstruirá a “América” como o fez Roosevelt com o New Deal mas, desta vez, de maneira sustentável. O plano prevê financiamento público para as infraestruturas “nature based”, convertendo todos os edifícios federais até 2035 em energia carbon free. Uma ruptura total com a gestão anterior que tirou de uma só vez todos os subsídios governamentais e as isenções fiscais às indústrias de carbono fóssil, recolocando, ao mesmo tempo, o país nos acordos de Paris.
Mas todos estes objetivos não poderão ser alcançados apenas por meio da tradicional governança política. Será necessária uma mudança nas arquiteturas dos processos decisoriais que, como acontecido durante a pandemia, deverão deslocar-se dos parlamentos para os dados e do debate político para o científico.
Perante a pandemia, as mudanças climáticas e a potencialidade de cálculo do Big data, a cidadania do terceiro milênio deverá ser ecológica e digital e marcada por uma ressignificação da ideia de sociedade e por uma profunda transformação da nossa condição habitativa. Tal processo interessará, indistintamente, cada âmbito do nosso comum: empresas, instituições, governos, cidadãos, produtores e consumidores. Mas a transição ecológica além de sua dimensão tecnológica, científica e governativa necessitará, também, de uma linguagem e de narrativas e filosofias ecológicas, capazes de ir além do humanismo sujeito-cêntrico e das contraposições humano-técnica, humano-natureza.
Massimo Di Felice
Sociólogo, doutor em ciência da comunicação pela Eca USP e pós doutor pela Universidade Sorbonne, Paris V. Professor e escritor.