Já não é uma novidade na indústria da moda e da beleza falar do desejo de mudança do masculino por meio da criação de uma estética que desconstrói o homem padrão e estereotipado. A passarela, assim como a publicidade e os editoriais de moda, sempre manifestaram de forma sensível o que é um desejo de uma época com muita maestria. Não tem jeito: se há algo ali pulsando como desejo no inconsciente coletivo, a moda consegue de forma sensível tangibilizar em estética, narrativas e produtos.
Mas um ponto diante do tema masculinidade veio à tona nas últimas temporadas de lançamentos de coleções e pode ser um eixo de reflexão desta coluna: a construção cada vez mais sólida do imaginário do masculino ideal nas narrativas e imagens da comunicação das marcas de moda. Não é mais só um ponto isolado, o assunto ganhou (literalmente!) corpo, forma e um universo para ser habitado.
Neste imaginário muito bem construído pelos principais diretores criativos da contemporaneidade, o homem revisita suas raízes em busca das memórias que possam utilizar para expressar sua essência escondida e não explorada dentro da fragilidade e vulnerabilidade que também lhe são pertencentes, além da força e robustez tão exaustiva – para não dizer opressora. Aqui, podemos ter como exemplo o último desfile masculino da grife francesa Louis Vuitton, que aconteceu em junho deste ano. Embora, o show tivesse sido uma homenagem ao designer Virgílio Abloh, que faleceu em novembro passado e comandava as criações masculinas da grife francesa. Na passarela, um resgate às memórias da infância do designer. E não teve jeito: resgatar essa essência do masculino foi trazer ao palco tudo que pode ser lúdico, leve e divertido. Um homem livre de amarras, com doses de muita fluidez e frescor.
Sem ser diferente, o recente desfile da Yves Saint Laurent, sob a liderança criativa de Anthony Vaccarello, traz os símbolos que geram a produção de sentido em torno do desejo deste novo masculino. Se olharmos para os sentidos de cada signo que foi utilizado ao longo do show da grife francesa, veremos que há, com toda a possibilidade de decodificação que a semiótica nos dá, uma produção de sentido e manifestação deste tal desejo do novo masculino que o espírito do tempo tanto manifesta.
Modelos com corpos longilíneos, longe de músculos e pelos, se distanciam cada vez mais da imagem padronizada do que “é ser homem”. O styling, por sua vez, traz a profusão de laços, tecidos leves e cheios de movimento, além de uma alfaiataria que flerta com o feminino. Ou seja: está cada vez mais difícil colocar esse novo homem em uma caixa de previsibilidades ou expectativas de gênero.
A escolha do cenário do desfile, o deserto do Agafy, em Marrakesh, permite fazer alusão ao contexto do masculino que se habita nos dias de hoje: rígido e com poucas chances de florecer. Mas nem tanto. Há chances de mutação, pois também é no deserto que há o sol mais potente e a possibilidade de enxergarmos a luz com mais amplitude e um ecossistema que vibra embora tanta resistência e desafios, mesmo com tanta escassez aparente. É naquele deserto ali de Marrakesh que Vacarello traz o sol que toca a pele com força, mesmo que ainda haja proteção de algumas roupas ou acessórios. E, sim, é possível haver sopro de vento e fluidez onde parece só existir ausências de vida, de respiro, de transformação.
É no crepúsculo eminente do local que a claridade transborda e a masculinidade é colocada em xeque: tudo que antecede a escuridão é preciso ser vista, é preciso ser ressignificada. E o papel do novo masculino caiu como uma luva neste contexto.
Andréia Meneguete
É jornalista. Especialista em Comunicação de Moda e Cultura Material e Consumo. Professora do MBA de Moda da Escola de Comunicações e Artes da USP.