Cultura do cancelamento: um breve apanhado acerca do fenômeno, meia década após o seu surgimento

Por Clotilde Perez

20/07/2022 09h00

Compartilhe
  • Whatsapp
  • Facebook
  • Linkedin

 

Não é novidade que o termo “cultura do cancelamento” tenha se tornado um tema recorrente em diferentes esferas do debate público, tanto online quanto offline. O fenômeno tem suas origens associadas ao movimento Me Too (Eu Também, em português), que possui como objetivo principal acolher vítimas de assédio e violência sexual, além de combater sistematicamente tais práticas. Apesar de sua fundação ter ocorrido em 2006, foi em outubro de 2017 que o movimento alcançou relevância global, quando o produtor hollywoodiano de cinema Harvey Weinstein foi acusado de abuso sexual por dezenas de mulheres, e a atriz Alyssa Milano tuítou a seguinte frase: “se você foi assediada ou violentada sexualmente, escreva ‘eu também’ como resposta para este tuíte”. Milhares de pessoas interagiram com o tuíte da artista, e logo deu-se início a hashtag #MeToo, que rapidamente viralizou nas plataformas digitais, principalmente no Twitter, incentivando inúmeras pessoas a compartilharem os abusos que sofreram, sendo a maioria mulheres. Assim, estava estabelecido o primeiro caso no qual a terminologia “cultura do cancelamento” passa a ser empregada, mas, sem dúvidas, não o último.

 

Em 2019, o Dicionário Macquarie, responsável por selecionar anualmente as palavras e expressões que mais impactaram o comportamento humano naquele período, elegeu a cancel culture como o termo do ano. Quase três anos depois, a popularização do cancelamento permitiu que o fenômeno conquistasse um papel relevante na dinâmica atual das relações em sociedade, adquirindo até mesmo um caráter de prática corriqueira. Porém, é necessário levar em consideração os deslocamentos que a cultura do cancelamento sofreu entre seu surgimento e sua ampla disseminação.

 

Nas primeiras elaborações de um conceito acerca da cultura do cancelamento, embora houvesse alguns pontos de diferença, todas as significações vinculavam o fenômeno com o combate a falas e comportamentos que hostilizem parcelas mais vulneráveis da sociedade. Nguyen (2020), por exemplo, interpreta a cancel culture como uma crescente manifestação ativista de mídia social, que incentivou muitos indivíduos a promoverem o boicote de pessoas, empresas e sistemas que estejam desalinhados com os valores sociais vigentes. Nesse sentido, o cancelamento emerge como instrumento de oposição a discursos e práticas que reverberam preconceitos e intolerância, não estando relacionada, inicialmente, a discursos de ódio e a propagação de qualquer tipo de violência. A pretensão de cancelar algo estava muito mais associada a erradicar comportamentos e estruturas prejudiciais do que ao apagamento de uma pessoa e de sua identidade enquanto ser social.

 

Ao longo dos últimos anos, entretanto, ficou claro que a cultura do cancelamento não estava imune ao caráter mutável e ágil do meio digital, assim como outras práticas potencializadas pelo online. A partir da sua propagação expressiva e das transformações que a acompanharam, são estabelecidas discussões mais concretas a respeito dos benefícios e malefícios da cancel culture, com críticos determinados a expor os danos que essa manifestação pode causar. Entre os argumentos apresentados, um dos mais pertinentes é que este fenômeno legitima a censura, contestando a liberdade de expressão. Emmanuel (2020), por exemplo, alega que a cultura do cancelamento tem como base indivíduos que não concordam com discursos ou ações disseminadas em um ́̃ perfil específico e, para reprimir esses comportamentos, se expressam de maneira ofensiva, o que não é justificável. Ross (2020) complementa esse raciocínio, ao classificar ̃́́ a prática de cancelamento como problemática por estimular uma dinâmica eliminatória, em que os usuários hostilizam qualquer um com quem não concordem perfeitamente.

 

Analisando as atuais conjunturas, fica evidente que uma certa banalização passou a caracterizar o “movimento cancelador”. A popularização do termo, em conjunto com a ausência de uma maior compreensão sobre suas origens e objetivos, abriu espaço para uma ressignificação da prática, sem quaisquer diretrizes no que se refere a essa transição. Considerando essa perspectiva, de fato, é preocupante que a cultura do cancelamento seja trivializada, ao invés de atuar como um mecanismo de auxílio para modificações necessárias no corpo social contemporâneo.

 

Certamente, a trajetória percorrida pela cultura do cancelamento, em quase meia década desde a primeira vez que a expressão foi elaborada e empregada como prática social, está permeada por uma alta complexidade. Os debates existentes sobre a temática estão marcados por uma polarização, com defensores e opositores claramente definidos. Não é possível, no entanto, apresentar respostas rigorosas e conclusivas com relação aos seus impactos e aplicações, visto que se trata de um fenômeno midiático muito recente, que ainda não possui entendimentos cientificamente delineados.

 

É imprevisível, portanto, afirmar quais caminhos o cancelamento irá seguir: um retorno aos seus princípios iniciais, reposicionando a transformação coletiva como principal objetivo da prática? Ou, estaria o fenômeno caminhando para vias cada vez mais excludentes, quase como um ostracismo grego do século XXI? Essas são apenas algumas possibilidades que a cancel culture pode seguir. Em um contexto tão opaco, todavia, é plausível afirmar o seguinte: fomentar o arcabouço teórico sobre essa prática ainda pouco explorada e estimular a pesquisa científica a respeito da temática e de seus desdobramentos, são as opções mais viáveis para a compreensão de um fenômeno, ao mesmo tempo, tão controverso e fascinante.

 

Jacqueline Ausier

Relações públicas pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e mestranda em Ciências da Comunicação no Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGCOM – ECA/USP).

 

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.