A expressão ‘é preciso ter peito’, e peito aberto, está revigorada a julgar pelas páginas das redes sociais digitais e dos principais jornais em circulação por conta da proibição no Instagram, em 9 de agosto de 2021, do cartaz do novo filme do diretor espanhol Pedro Almodóvar, Madres Paralelas (2021), com lançamento previsto para este mês de setembro no Festival de Veneza e provável exibição no Brasil em novembro de 2021. O fato causou estranheza uma vez que o Instagram já em 2020 passou a ter novas diretrizes sobre nudez em fotos ali publicadas. Hipocrisia à parte foi o que desencadeou a mudança de costumes. Muito se vê de nudez nas imagens postadas, mas as proibições levam em conta aspectos pornográficos das fotos. Ou talvez casos preconceituosos como o acontecido à modelo negra e plus size, Nyome Nicholas-Williams, do Reino Unido. Quem sabe a diferença entre pornografia e erotismo?
Terá sido também a proibição ao cartaz do filme um caso de nudez associada à pornografia? Ou uma associação de Almodóvar ao pornográfico? O cineasta compõe suas obras com personagens hermógenas quase sempre, em que pese a diferença do início da carreira nos anos 80 em que ele foi proibido mundo afora e o início deste século em que o espanhol já poderia ser chamado canônico no cinema. O cartaz do filme é do designer espanhol Javier Jaén que protestou veementemente nas redes contra a proibição sofrida. A associação do grupo justificou-se apontando que a princípio o Instagram retira todas as fotos que indicam nudez. Com a repercussão do caso, a rede restaurou as imagens e acudiu com pedido de lamento pelo transtorno. A imagem do cartaz, belíssima aliás, é composta em quadro vermelho, bem às cores mágicas de Almodóvar, com um seio ao meio mostrando em branco e preto um mamilo do qual escorre uma gota de leite. Inevitável não pensar no filme Kika e na gota de esperma que cai ao rosto, bem no olho, da apresentadora Andrea Caracortada. Não há como não associar a imagem do mamilo à forma de um olho. Diríamos de um olhar em cor da pele circunscrita à imensidão do vermelho e das inscrições verbais com o nome da produtora El deseo, do cineasta Almodóvar, do filme e da ficha técnica. Um êxtase do imaginário.
Esse mamilo nos olha, olhamos para ele como voyeurs, como bebês à espera da amamentação. Como seres libidinosos que somos no acalanto do prazer sensual. Eis talvez o porquê da proibição. O Instagram viu nesse mamilo esse olhar especular de que nos fala Arlindo Machado, sobre o qual o psicanalista Jacques Lacan trabalha. Era necessário fechar olhos ao peito aberto. O filme gira em torno da maternidade de mulheres que dão à luz no mesmo dia. Fato por demais comum. É ver o filme para saber quais outras colocações poderão ser feitas, além das já mencionadas pelo diretor: a maternidade, a família, a memória, um tudo sobre minha mãe (1999). Quase é possível ouvir a voz materna nesse sentido também especular, algo nos fala desse leite no mamilo. De reminiscências, de um passado de espelho materno.
Em se tratando de memória, vem à mente as campanhas polêmicas feitas pelo fotógrafo Oliviero Toscani para a Benetton na década de 90. As temáticas das obras de Toscani para a Benetton ainda nos causam impactos. São imagens de casais homoafetivos, de um doente terminal, um corpo amputado, um padre e uma freira beijando-se no contraste branco e preto; enfim, beleza estética das fotografias, criação publicitária com a sempre marcação da Benetton. Uma eterna publicidade de um cadáver que nos sorri (1995). A recordação – comparativa ao cartaz do filme – chega a uma das imagens em particular que – como muitas outras- trabalhou a questão inclusiva tão emergente nestes tempos. Trata-se de uma imagem de uma mulher negra usando uma blusa vermelha da Benetton. Esse vermelho é um atrativo que nos volta ao cartaz do filme de Almodóvar. A mulher tem nos braços um bebê branco que nos leva imediatamente à metáfora da Pietá, dessa incomparável doçura do símbolo divino da maternidade. O detalhe – ao menos aquele considerado polêmico – é o fato de o bebê branco ser amamentado pela mulher negra. Uma referência explícita e crítica às amas de leite a questões raciais se visto neste momento. Ali nosso olhar também repousa em um mamilo descoberto. Não nos é dado a ver o leite que dele escorre, ele está na boca do bebê. Olhamos esse leite escondido, não sem antes também repousar o olhar à direita ao alto da imagem, bem acima da cabeça do alvo bebê, à inscrição: ‘UNITED COLORS OF BENETTON’. Há que se ter peito. Aberto.
Roseli Gimenes
Coordenadora do curso de Letras da UNIP
Coordenadora do projeto Cultura em Foco do Instituto Legus
Professora no curso Semiótica Psicanalítica PucSP
Pós doc em Comunicação e Semiótica PucSP
Doutora em Tecnologias da Inteligência e Design Digital PucSP
Mestre em Comunicação e Semiótica PucSP