Pensar o Brasil tem sido uma constante na minha trajetória de professora e semioticista. E ainda mais neste ano de 2022, decisivo em vários aspectos. O mood da retomada vivido recentemente não se refere “apenas” a um reinício da vida pós-Covid, ainda que a doença não tenha desaparecido totalmente como sabemos, mas também a possibilidade de retorno ao caminho de conquistas sociais, de valores republicanos que vinham sendo construídos nas últimas décadas no caminho de que todos pudessem estar incluídos e da esperança de voltar a imaginar algum futuro razoável para o país.
Somos uma democracia relativamente jovem, falha em vários aspectos, mas ainda assim mantemos nossas instituições firmes e atuantes, preservamos algum tipo de harmonia entre os poderes, temos uma imprensa livre, mesmo que não estejamos imunes de ações autoritárias contra instituições midiáticas e jornalistas e temos eleições que funcionam. O mesmo não podemos afirmar da nossa República.
Os duzentos anos da Proclamação da República, recentemente celebrados, são uma oportunidade para pensarmos o que construímos até aqui, onde chegamos e o que nos falta conquistar. E o que não temos é justamente o sentimento, a compreensão e a valorização da dimensão pública da vida. Construir o significado da res publica (latim) ou simplesmente da “coisa pública”, é fundamental à sua consolidação.
É a forma de governo que optamos há 200 anos, fundamentada na separação do Estado da religião, da religião da ciência e na igualdade formal das pessoas, ainda que esta igualdade seja aquela das possibilidades para todos – temos a certeza de que não é vivida por milhões de brasileiros que no limite, buscam ossos para se alimentar; em que o poder político é exercido por mandato a partir de eleições livres, alicerce mais bem solucionado desde as primeiras eleições ainda nos anos 80; baseada na existência de uma comunidade robusta com interesses, quereres e fins comuns, aqui, nossa maior fraqueza.
Estamos vivendo a força do individualismo desenfreado, onde o que interessa é apenas e tão-somente o que nos toca e aos nossos no aqui e agora. Sem reflexão sobre o passado, e qualquer exercício sobre as consequências para o futuro, mesmo mais próximo. O imediatismo na sua vil imediaticidade revela nossa incapacidade estrutural e, em muitos casos, deliberada, de não pensar no coletivo.
Não conseguimos construir um eixo de sentido que nos una e que permita a conquista de um “comum”, que é de todos e que por isso, será cuidado por todos. A coisa pública para nós ainda é compreendida como “de ninguém”, daí que pode ser desconsiderada, aviltada ou aniquilada sem grandes dramas porque não há o sentimento de perda. Não perdemos o que nunca tivemos e que, ao que parece, seguiremos não tendo, infelizmente.
Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil.
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