O que explica a comoção mundial decorrente da morte de uma rainha, com 96 anos, em pleno século XXI? Muitos aspectos explicam o fenômeno.
A rainha Elizabeth II teve o maior reinado da história recente, foram 70 anos na posição de chefe de Estado e de chefe da Igreja Anglicana. Passou por uma guerra mundial, incontáveis conflitos políticos e econômicos, tensões religiosas, crises sociais, crises identitárias e crises morais, principalmente dentro da sua própria família.
Testemunhou acontecimentos históricos, como a primeira transmissão de TV e a chegada no homem à lua. Recebeu centenas de chefes de Estado de todos os continentes e vários Papas. Cumpriu, como nenhum outro líder e estadista, sua função de representação, imparcialidade e acolhimento dos cidadãos britânicos. E o fez com maestria, gentileza e afeto. Aliou tradição com simpatia pela inovação.
Não emitia opinião sobre as questões que tomavam a cena midiática e política, mantendo-se em distanciamento técnico-estratégico. Conhecia a liturgia do título e seguia os protocolos com leveza, o que incluía sorrisos e gestualidades contidas de simpatia, como o seu característico e mundialmente conhecido aceno de cumprimento.
Como figura central, compreendeu sua força atratora de olhares, interesses e admiração, e respondeu com estilo, criando o seu próprio jeito, expresso de modo potente nas roupas, joias, acessórios e movimentos carregados de significados. Seus trajes monocromáticos, bem cortados e de cores intensas, transmitiam otimismo, diversidade, alongavam a silhueta e, ao mesmo tempo, permitiam que ela fosse notada imediatamente, mesmo nas multidões. Os súditos ganhavam a generosidade de sua rainha que, consciente da curiosidade e interesse que despertava, buscou facilitar a possibilidade de ser vista.
A quem diga que esta imediata localização facilitaria sua segurança, talvez, mas, paradoxalmente, também a tornava um alvo. Sempre de chapéu, como preconiza o protocolo real britânico, optava por seguir na monocromia dando um aspecto de continuidade ao traje, mas não abria mão da criatividade no design, com recortes, sobreposições e apliques diferenciados.
O chapéu que esconde e revela, individualiza e coletiviza, reforça o aspecto identitário de sua posição de singularidade – é soberana. Bolsa discreta, na cor preta, alinhada aos sapatos também pretos, com salto médio confortável, de grifes britânicas, aportavam o classicismo necessário. Luvas brancas e lenços em ocasiões mais descontraídas também eram recorrentes em seus looks. O colar de pérolas era a opção de complemento para o cotidiano de suas funções palacianas. As pérolas carregam o sentido da permanência, da delicadeza e da perfeição, sendo flexíveis na composição e eternas na essência. As joias, de beleza e valor incalculáveis, ouro, platina, brilhantes e pedras das mais preciosas, com lapidações sofisticadas, surgiam nas composições especiais para os ritos que demandavam maior gala e glamour.
As coroas, as mais diversas, das tiaras simplificadas, diademas exuberantes à coroa imperial, usada na sua coroação em 1953, são muitas e com heráldicas próprias. Muitas pertencentes à Coroa, ao Estado, várias encomendadas a partir de pedras preciosas recebidas como presentes – inclusive o Brasil a presenteou com uma coleção de aquamarinas transformadas em colar, brincos e coroa (Tiara Papure aquamarines brasileiras), tantas outras heranças de seus antepassados, conferiam distinção, glória e um halo de esplendor que unia o humano e o divinal, pela mediação da materialidade resplandecente.
Elemento sempre presente na harmonização e beleza de suas opções de vestimenta, o broche merece destaque. Uma joia, sempre ao lado esquerdo do peito, manifestava os sentidos mais emocionais da rainha. A cesta de flores, broche que a monarca usava nas celebrações por ocasião dos nascimentos, de seu filho Charles, de seus netos e em algumas celebrações natalinas, representava a boa-nova própria aos nascimentos. O broche crisântemo, utilizado no seu casamento, se repetia na composição das comemorações dos aniversários das bodas do casal real, revelando os signos de afeto e companheirismo. O broche rosa era uma manifestação de amor diretamente vinculada à sua mãe, a rainha Elizabeth, carinhosamente chamada de rainha-mãe, assim como o broche concha com uma pérola central.
Nada era ocasional ou desprovido de intencionalidade em seus modos e modas, ainda que demandasse repertório sofisticado para a compreensão dos significados mais sutis e complexos.
De personalidade calma e tranquila, com sorriso frequente, a rainha Elizabeth II transmitia a necessária temperança e afeto; o senso de dever sempre colocado em primeira posição, conferia-lhe o signo do imenso valor que ela atribuiu ao sentido público do lugar que ocupava no espaço-tempo; sua presença destacada, reconhecível e longeva comunicava estabilidade, familiaridade e solidez.
Em tempos de instabilidade, transformações rápidas, abrangentes e profundas, tensões diversas e dificuldades de projetar um futuro razoável, a Rainha Elizabeth II era o símbolo maior do “está tudo bem”, apesar de… Um verdadeiro eixo de sustentação, otimismo e conforto psíquico.
Clodilde Perez
Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil.
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