Em que creem os jornalistas?

Por Redação

07/04/2021 13h00

Compartilhe
  • Whatsapp
  • Facebook
  • Linkedin

Artigo

 

Em 1931, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) estabeleceu o dia sete de abril como sendo o dia do jornalista. Por quê? Os motivos da escolha são curiosos, um tanto labirínticos em suas relações internas, mas muito esclarecedores em seus efeitos finais.

 

A história começa cem anos antes. Começa em 1831. Naquele ano, no dia sete de abril, Dom Pedro I abdicou do trono brasileiro, em favor de seu filho. Costuma-se creditar a renúncia, ao menos em parte, ao nome do jornalista italiano Giovanni Battista Libero Badaró, que vivia no Brasil desde 1826 e fazia oposição ao imperador. Daí a homenagem.

 

Há, porém, um detalhe intrigante: quando o soberano abriu mão da coroa, Líbero Badaró já estava morto havia mais de quatro meses. Sofrera um atentado no dia 20 de novembro de 1830, na cidade de São Paulo, onde morava, e faleceu no dia seguinte, aos 32 anos de idade. Esse é o detalhe que intriga. Como um morto pôde ajudar na queda do monarca?

 

A resposta tem a ver com a força das ideias, acima da força das pessoas. O atentado contra o jornalista fez recrudescerem as manifestações contra Dom Pedro, que já vinham num crescendo. O governante estava isolado e, com frequência, apelava para medidas autoritárias, sem nenhuma empatia com o povo. Daí que, quando veio a renúncia, ela veio para dar razão, ainda que póstuma, ao mártir do jornalismo. Conta-se que, antes de expirar, Badaró teria dito: “Morre um liberal, mas não morre a liberdade”. Moral da história: a liberdade que não morre derrotou o poder que às vezes nos mata.

 

Contada assim, de forma tão concisa e alegórica, a luta do jornalista assassinado pode soar como parábola. Não importa, ela nos ensina uma verdade: a força bruta não vence a vocação de uma sociedade que quer ser livre. Em outras palavras, a prepotência dos de cima pode frear o curso da História, mas não dará conta de represá-la para sempre. A liberdade virá, mesmo que liberais sejam fuzilados.

 

Essa ideia inspira o ideal da imprensa. Todo jornalista acredita que o livre debate entre os cidadãos os fortalece e leva de arrasto as barricadas que se armem contra o povo. Estamos falando aqui de um sonho liberal, é claro, mas esse sonho se expandiu e ainda mora no exercício desse ofício tão vital para a democracia. Ao menos no jornalismo, o sonho liberal foi além, muito além do liberalismo.

 

No Brasil do século XIX, os jornalistas eram quase todos homens brancos e professavam sua fé na propriedade privada. Não obstante, a confiança na força transformadora das ideias, que deveriam fluir por meio da liberdade de imprensa, alcançou outros ideários. A causa abolicionista foi uma causa da imprensa no século XIX, com o jornalista negro Luiz Gama à frente. Bandeiras socialistas e anarquistas viriam no começo do século XX. O jornalista Euclides da Cunha criou, na cidade de São José do Rio Pardo, O Proletário, órgão do Clube Internacional Os Filhos do Trabalho, de filiação socialista e, em termos, também marxista. Mais tarde, os pequenos jornais da chamada “imprensa alternativa” que combatiam a ditadura militar no Brasil (alguns, como O Pasquim, nem eram tão pequenos), não cultuavam a propriedade privada nem comungavam dos valores liberais, mas seguiam acreditando na força transformadora das ideias. De um jeito ou de outro, todos acreditavam que a liberdade viria, mais cedo ou mais tarde, mesmo que seus militantes fossem torturados, exilados e mortos.

 

Esse é o ideal da imprensa, mesmo quando o jornalista não é liberal como Líbero Badaró. Ser jornalista é tomar parte de uma grande utopia, que guarda em si uma carga genética do Iluminismo, do liberalismo, do socialismo democrático e de todas as formas de solidariedade. Jornalistas acreditam que nenhum poder é legítimo se emanar do povo e não prestar contas a esse mesmo povo. Jornalistas acreditam que o público, ao ser bem informado, terá plenas condições para decidir com sabedoria sobre seu próprio destino. Jornalistas acreditam que a informação – bem apurada, bem editada, bem publicada – muda o mundo. Jornalistas acreditam que o pensamento só prospera quando baseado em fatos. Jornalistas acreditam, com Hannah Arendt, que a liberdade de opinião é uma farsa quando não está baseada nos fatos. Jornalistas acreditam que a liberdade é muito maior que o liberalismo e acreditam, enfim, que sem liberdade não há vida inteligente, não há espírito, não há democracia e não há esperança.

 

 

Eugênio Bucci

Jornalista, professor titular da ECA-USP, é articulista do jornal O Estado de S. Paulo e autor de Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras), A imprensa e o dever da liberdade (Contexto), Existe democracia sem verdade factual? (Estação das Letras e Cores), entre outros livros. Ganhou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2013.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.