Artigo
Quando falamos em Alice no País das Maravilhas, de imediato é possível elencarmos algumas palavras-chave que fazem parte do repertório fantástico e da construção estética da história, como: menina, coelho, relógio, chapéu, gato, rainha, cartas. Mas ao mesmo tempo, se pensarmos em uma perspectiva narrativa, fica difícil associar de maneira lógica todos esses elementos sem um enredo que crie essa relação de um universo ficcional que faça sentido tanto para quem conta a história, quanto para quem a aprecia. Sempre cercado de muitos mitos e polêmicas sobre Carroll e os Liddell, “Aventuras de Alice no País das Maravilhas” encontrou seu espaço entre os clássicos que atravessam o limiar entre literatura infantil e adulta. Como outros títulos que partem do mundo real para um universo de regras próprias, onde o fantástico, o absurdo, o mágico e o ilimitado coexistem, assim, a narrativa de Carroll é capaz não só de envolver seu público-alvo, infanto-juvenil, mas também de levar adultos a uma experiência sensível, associada diretamente à infância.
E justamente por ser uma narrativa muito rica e complexa, Alice no País das Maravilhas se torna também um universo fértil para adaptações, que ao longo dos anos percorreu desde animações feitas pela Disney (1951) até uma visão particular de Tim Burton (2010), que abriu precedentes para uma continuação (2016) intitulada “Alice Através do Espelho”, objeto de análise neste momento. Com uma mistura de muito sentimentalismo e fantasia, Alice Através do Espelho traz uma perspectiva vivida pela protagonista totalmente nova e mais madura que a anterior, da qual a personagem tinha a inocência e a sensibilidade da primeira experiência com aquele mundo de maravilhas. Mas como a estética, do ponto de vista da construção imagética e simbólica, poderia fazer parte de um contexto do imaginário atemporal que é o “país das maravilhas” e todos os elementos que o compõe?
Inicialmente podemos argumentar que a experiência estética em Alice, está alicerçada tradicionalmente na construção da personagem como símbolo de uma inocência em um mundo de fantasias, sem a responsabilidade de encará-lo com qualquer carga de maturidade ou responsabilidade. Diferente do que é imposto a ela na sequência da história em que a própria Alice se mostra mais confiante e madura perante os acontecimentos anteriores. Justamente por essa questão, dentre tantos outros aspectos relevantes da história, o que mais se destaca é o foco na mulher com um empoderamento necessário, bem mais contemporâneo. Alice, indo totalmente contra as regras da sociedade vigente na época em que vive, auxilia o público na compreensão dos direitos da mulher em fazer tanto quanto o homem fazia naquela época. Tal abordagem fica visível em algumas frases machistas que são prontamente rejeitadas pela heroína, fazendo com que até mesmo a Disney repensasse o conceito de princesa ou mesmo “donzela em perigo” que há muito faz parte de um senso comum dentre os clássicos contos de fadas. Essa mudança no paradigma das histórias fantásticas, sejam elas clássicas ou atuais, faz com que a preocupação com a construção da personagem seja uma constante, desde a sua personalidade até o universo em que ela está inserida e suas relações.
Alice pode ser também uma boa metáfora para momentos tais como quando desejamos voltar no tempo, na tentativa de corrigir erros do passado ou de reviver momentos perdidos. Mas a personificação do tempo (interpretado por Sacha Baron Cohen) na história, diz que não podemos mudar o passado, mas é possível aprender com ele. Mesmo assim, Alice tenta com todas as suas forças mudar o passado, na busca de evitar que seu amigo, o Chapeleiro (Johnny Depp), viva uma dor como a sua: a falta de seu pai. Ao longo dessa trajetória a personagem assume na jornada a dualidade que enfrenta a partir do momento que percebe que não pode voltar atrás com a sua perda, mas ao mesmo tempo, quer se arriscar para evitar que o amigo perca sua família. Nessa perspectiva, é interessante olhar o passado como algo que nos torna o que somos, que nos molda, que nos influencia, mas nunca o tratar como determinista de nossa história, muito menos do futuro que nos reserva. Afinal, sempre poderemos aceitar nosso passado e seguir em frente, pois o agora, no momento presente, é o único tempo capaz de realizar mudanças.
Esse processo que envolve a construção de laços afetivos e relacionais, estreita ainda mais as relações do tempo com o sentimento, como algo que influencia desde a personalidade até as características físicas das personagens. O Chapeleiro deixa isso evidente ao se ver perdendo sua essência, sua cor, sua motivação, em função das lembranças de um passado que o assombram e não permitem viver o presente e menos ainda planejar o futuro. Se pensarmos nas relações que nós mesmos construímos e da importância que damos ao passado, à trajetória, como se o que a pessoa é no presente, se baseasse apenas no que já tenha vivido. A questão é que o repertório não vem apenas da experiência ou da vivência, vem do aprendizado sobre as consequências de seus atos e suas escolhas. Se vivenciamos algo que nos trouxe um retorno negativo, e fomos capazes de perceber e reconhecer os respectivos erros, as chances dos mesmos erros se repetirem são menores. Isso realmente nos molda, mas as ações que seguem subsequentes a isso, mostram a influência dos fatos e do passado na vida de cada um. Ou seja, se somos capazes de aprender com nossos erros, reconhecê-los, assumi-los, talvez também sejamos capazes de “corrigi-los” tomando atitudes diferentes das anteriormente tomadas, um caminho para nossa reconstrução.
Outra característica interessante a ser observada na narrativa fílmica em questão é a decisão da Disney de criar uma ambientação acolhedora para a relação da jovem Alice com o Chapeleiro Maluco, vinculada ao sentimento recíproco de uma amizade verdadeira, tensionando o individualismo tão próprio das sociedades hipermodernas.
Interessante que, quando se trata de tempo, é difícil discutir as certezas ou peculiaridades que o humano enfrentaria ao lidar com alterações nessa base. Existem milhares de teorias e conspirações sobre isso, mas talvez a mais relevante, até hoje, seja a de Einstein. A famosa teoria da relatividade afirma que é possível realizarmos viagens para o futuro devido à dilatação do tempo. Para isso basta que o viajante acelere até atingir velocidades próximas à da luz. Tal teoria já foi utilizada como inspiração para diversos filmes, como De Volta para o Futuro (1985), que explora a questão da velocidade exata (88 milhas por hora) como a condição para realizar uma viagem no tempo, mas neste caso, não somente para o futuro, mas para qualquer época. Por isso a questão temporal envolve conceitos elementares e regras que estudiosos afirmam que devem ser rigorosamente respeitadas para não haver nenhum colapso na relação espaço/tempo. Outra regra importante e, que a maioria das histórias costumam mencionar é que tudo que for alterado no passado, por mínima que sejam as alterações, terão enormes consequências no futuro. Justamente por isso, a personagem de Alice se vê no impasse de tentar ajudar seu amigo Chapeleiro e ao mesmo tempo acabar com a rivalidade entre as irmãs rainhas, porém sem alterar a linha temporal que afeta todo o universo que ela habita, pois isso poderia acarretar a inexistência dos seres que vivem nesse ambiente e até mesmo da sua própria.
A questão humana como influenciadora do espaço/tempo acaba se tornando um fator decisivo para a construção e amadurecimento da personagem que se vê obrigada a tomar decisões com base não só em sua experiência, mas tendo em conta a experiência dos demais personagens que a cercam, em um exercício empático. Essas ações abrem novas possibilidades de relação consigo, com sua família, com suas lembranças e com o contexto em que vive. Apesar do filme tocar em temas como perdas, família, compaixão, tempo, feminismo etc., o que mais fica em evidência são as questões universais do desenvolvimento não somente dela como personagem, como também do universo em que ela está inserida.
Por fim, o desfecho da trajetória da personagem, traz consigo uma carga de sentido mais forte do que a de todas as mencionadas anteriormente. As ações tomadas por Alice e pelas demais personagens envolvidas diretamente com a história, mostram que muito mais do que tentar alterar o passado, ou reviver algum momento perdido, saber conviver com os fatos e tomar ações no presente que sejam muito mais significativas, são mais eficazes quando se trata de mudanças, reconciliações ou segundas chances. É interessante inclusive fazer a relação da quebra de paradigmas em que Alice se encontra quando ela, uma mulher, se arrisca e assume uma posição ativa para salvar seu amigo Chapeleiro, um homem, o que já desde o início foge do clichê das antigas histórias fantásticas e romantizadas.
Em síntese, “Alice através do espelho” é uma obra cinematográfica que, de certa forma, nos traz discussões sobre paradigmas que permeiam não somente o que está atrelado ao humano como existente e, portanto, na sua individualidade, mas também explicita como os afetos interferem nas relações que construímos no espaço/tempo em personificações reais, simbólicas e/ou imaginárias.
Filipe S. Perez
Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital e graduado em Multimeios pela PUC SP. Redator da agência Folzke, ator e dublador.