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Ignorância com soberba e poder na tentativa de censura

Por Clotilde Perez

30/03/2022 08h16

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“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”.

Este é o artigo 5º, inciso IX da Constituição Federal do Brasil. A clareza do texto parece ofuscar a razão de alguns que insistem em fazer valer, pela força e pelo lugar que ocupam, suas crenças, valores individuais preconceituosos e autoimagem superestimada. Um presidente, que nunca honrou esse lugar, em movimento para tentar se reeleger, se acha no direito de pedir intervenção judicial, por meio de uma representação vinda de seu partido, o PL, após uma manifestação livre e espontânea por parte de uma artista, no caso a Pablo Vittar, durante o festival Lollapalooza, em São Paulo. O que a Pablo fez foi manifestar seu repúdio (#foraBolsonaro) a um governante que tem sua trajetória de vida vinculada a preguiça e a promoção da morte em amplos sentidos e que seguiu assim, após ser eleito, portanto, não “enganou ninguém”, fazendo desse lugar de poder, a fonte de legitimidade para agressões e agressores de natureza diversa. E mais, ao portar a toalha, não era uma bandeira, estampada com a imagem de Lula, entregue por um fã, portanto vinda do público, Pablo expressou seus valores e esperança de mudança, o que é absolutamente legítimo, para todos nós!

 

A ideia de fazer a representação já é descabida para qualquer cidadão que conheça seus direitos e deveres, mas não para por aí. A representação do partido encontra um ministro do Tribunal Superior Eleitoral – TSE que compreende que é possível censurar previamente o que artistas dizem e fazem no palco. Qual foi a parte do artigo 5º., inciso IX da Constituição Federal que o senhor Raul Araújo não entendeu? Como pode interpretar como propaganda eleitoral antecipada as manifestações da Pablo Vittar e determinar multa de R$ 50 mil para a organização do evento caso houvesse outras manifestações de natureza semelhante? Isso é censura prévia! Não pode! Como a organização iria prever?

 

Estamos vivendo um momento em que há nítido orgulho pela ignorância, soberba a partir de lugares de poder e indiferença com a coletividade e com os mais essenciais princípios da democracia. Isto é certo, mas também é certo que não podemos desistir. Assim, é importante lembrar que propaganda, muitas vezes citada como campanha, reúne uma série de ações que podem incluir a produção de material físico e digital com o objetivo claro de expressar e dar visibilidade a uma ideia, uma marca, um produto ou uma pessoa, a partir de uma origem clara, ou seja, há um polo emissor, um patrocinador identificado. O que isso tem de relação com uma manifestação espontânea de uma artista no palco? E todos os demais artistas que antes e depois da Pablo puxaram o coro “fora Bolsonaro”? Ou o que fazer quando Glória Groove usa um maiô com o número 13 no palco, como aconteceu no dia seguinte já consciente do ocorrido com a Pablo? Recolher o “material de campanha”? Soa ridículo.

 

Outro aspecto que chama a atenção é a trapalhada da equipe do partido que mal conseguiu fazer uma petição com a citação correta da empresa que realiza o Lollapalooza, tendo que corrigir e novamente acionar ao TSE após perceber o equívoco. Quanto ao TSE, ainda temos alguma esperança porque o tribunal é presidido por Edson Fachin que repudia com veemência qualquer forma de censura e que já deu sinais de que conhece e bem a constituição brasileira, e não vai deixar que esta instância de prestígio e seriedade seja arrastada para os embustes politiqueiros.

 

Mas, em tudo isso há uma coisa boa, a ignorância sobre o que significa uma manifestação a partir de um símbolo, no caso, dois, Pablo Vittar e Lollapalooza, e os efeitos após tentativa de censura. O resultado é exatamente o oposto. Na tentativa de oprimir pela proibição, lançam luzes que potencializam os efeitos, antes naturais e expressivos de vontades, agora, movidos pela resistência e pelo total inconformismo com atos autoritários. Os sentidos crescem. Não adiante retirar a ação (o que o PL fez na segunda feira), não adianta derrubar a própria liminar que acolhia a representação do partido (o que o ministro do TSE Raul Araújo fez na noite de segunda), a repercussão já é tanta, que o famoso “o tiro saiu pela culatra” se instalou. De Lollapalooza passamos a Lulapalooza em segundos. Imagino a satisfação de Lula observando tudo isso; certamente um sorriso maroto inevitavelmente lhe surgiu ao rosto.

 

A falta de inteligência e a incapacidade de compreender que todas as ações, geram efeitos, inclusive os silêncios e omissões, seguem sendo uma constante nestes tempos difíceis. A pergunta sobre os efeitos de sentido nunca foi tão importante em tempos de sociedades midiatizadas. Diante disso, só posso recomendar, estudem, estudem muito, e se puderem, estudem semiótica, vai ajudar a não passarem vergonha.

 

 

Clotilde Perez

Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, é titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Ela é fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Ela apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.

 

 

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Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.