Só quem viveu os anos 60 e outros atrás pode entender de Kombi, a perua da Volkswagen que antecipou as tantas e muitas caminhonetes que vieram. Desajeitada, insegura, um tanto feia, sem dúvida. Inúmeros os acidentes provocados por sua frente achatada são memórias de muitos brasileiros. Veículo multiuso para carregamentos, mudanças, transportes e lazer. Quantos foram os acampamentos que a Kombi levou, quantos os piqueniques charmosos que ela proporcionou. Quanto casais enamorados nela se declararam. Assim, uma Kombi foi amor de muitos na mesma proporção das tristezas que, aliás, eram famosas por acidentes pela ausência da segurança que temos hoje. Temos? De cintos de segurança inexistentes a inúmeros outros itens.
A culpa não era só da Kombi.
Nostálgica como memes, ‘toca aqui, fusca azul’, um dos mais famosos praticados por jovens que nunca se sentaram no fusqueta, menos ainda na Kombi. Bregas, viraram a alma de colecionadores, pois sim. Ícones de uma geração. Uma turma que curtia Belchior, o cantor que desapareceu por um bom tempo e faleceu em 2017 quase no ostracismo. Assim são as coisas. Da canção dele nasceria um outro ícone dessa geração, a cantora Elis Regina que com ‘Como nossos pais’ fez a cabeça do pessoal que queria viver uma outra história que esbarrava em muitas das narrativas dos próprios pais, assim é a vida.
O desaparecimento desses ícones, Belchior, Kombi e Elis, é coisa do passado, já que a nova campanha da Volkswagen ressuscita todos eles. Criada pela AlmapBBDO, a publicidade da nova Kombi, agora elétrica, traz um design inovador e arrojado porque agora ele é nova van perua Kombi já sem a terrível frente tão rente ao parabrisa, agora é a Kombi segura. Ela continua linda, tão linda. Ficou nomeada de ID.Buzz! Buzz, com certeza, fiel ao sentido: agitada e cheia de burburinhos. Tudo que a turma de 60 representou.
Não só de flores vem o lançamento da Kombi. Causou mesmo burburinhos, porque a campanha fez o contraste sincrônico do novovelho, bem a imagem do ‘ovo novelo’, de Augusto de Campos. Ou o também icônico poema de Oswald de Andrade, ‘Aprendi com meu filho de dez anos que a poesia é a descoberta das coisas que eu nunca vi’. Ou mais ainda, ‘nada se cria, tudo se copia’, Lavoisier pela boca do inesquecível Chacrinha.
Por que burburinhos? A Kombi em si não causou tanto assim, exceto pelo saudosismo que representa. O que tem deixado articulistas, jornalistas e outras istas mais irritados é como a campanha foi apresentada ao usar a inteligência artificial com o deepfake, o rosto de Elis no corpo de uma modelo, tão malfadado, para trazer de volta não apenas a velha Kombi, mas a cantora Elis Regina contracenando com a filha, Maria Rita.
Em que pese a tecnologia usada, muita gente se emocionou ao ver duas Kombis e duas mulheres, mãe e filha, juntas. Mais do que juntas, elas cantam a música do Belchior que está exatamente clamando pelas mesmas coisas dos anos 60/70, o novo sempre vem. O novo velho está de volta. Uma imagem de Elis que tantas saudades deixou. Aquela Kombi revigorada, agora elétrica e nova. Quem aguenta? E quem aguenta ver que, sim, a tecnologia fez isso, tudo é fake, mas é preciso aplaudir os criadores da campanha que, digam o que disserem, movimentaram as mentes deste século 21. Mais de 50 anos estão de volta ao túnel do tempo. A gente sabe que não é verdade. Elis não está mais por aqui. Será? Não só está pela voz de sua filha, impressionantemente parecida, como está a todo o tempo nas rádios, nas playlists, nos videokês do Brasil afora. E a Kombi? Eterna em nossas memórias, ela agora está logo ali. Traz um sem números de coisas daquela velha dos anos 50 quando foi lançada. Alguns a chamarão de Frankenstein. Muitos falarão dela por conta da campanha, da falta de ética, do uso de IA, da falta de regulamentação do uso da IA… Enfim, é o que importa à publicidade. Falem. Falem muito. A nova Kombi agradece. ‘Eu vejo IA de gente morta’, diz a tirinha de Fabiane Langona na Folha de 6 de julho de 2023 (Viver dói). Bem-vinda, Kombi VW ID.Buzz!
Roseli Gimenes
Coordenadora do curso de Letras da UNIP. Coordenadora do projeto Cultura em Foco do Instituto Legus. Professora no curso Semiótica Psicanalítica PucSP. Pós doc em Comunicação e Semiótica PucSP. Doutora em Tecnologias da Inteligência e Design Digital PucSP. Mestre em Comunicação e Semiótica PucSP