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Mercadorias da felicidade

Por Clotilde Perez

02/02/2022 10h59

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A felicidade continua sendo a promessa central do capitalismo contemporâneo que não cessa em ofertar serviços e bens supostamente geradores de felicidade. Do lançamento do Prozac, um antidepressivo que há mais de três décadas segue fiel no compromisso com a oferta rápida, segura e eficaz da felicidade, das receitas de atitudes e comportamentos, foco dos textos e cursos de autoajuda, das diretrizes de pensamento dos coaches, dos apps de namoro e encontro, dos filtros de embelezamento das plataformas de videoconferência, passando pela psicologia positiva, pelas cirurgias estéticas e pelas redes sociais digitais que incentivam a diversão compulsiva acima de tudo e sua exposição irrestrita. Essas mercadorias da felicidade, que se expandem e se complexificam não se restringem a ofertar faíscas momentâneas de alegria e prazer, escapismo ou descontração. Ao contrário, objetivam tornar a procura permanente pela felicidade um lifestyle, um valor que posiciona e dá visibilidade aos indivíduos, tornando-os objetos de adoração, fetichizados, a partir do gozo manifesto da felicidade evidenciada nas imagens nas redes sociais, seguindo assim, as lógicas das relações básicas de consumo, onde há consumidores que precisam ser satisfeitos e há o mercado provedor desta satisfação. Tudo isto estaria “bem” não fosse a felicidade, um sentimento, um estado consciente de bem-estar, de satisfação, submetida às incontáveis e drásticas diferenças que temos no conjunto dos mais de 7,8 bilhões de habitantes terrestres. Nossos quereres, vontades, desejos, mais ou menos inconscientes, dão sentido à nossa vida, que é singular.

Questão adicional se manifesta quando temos em conta nossa natureza. Somos humanos, morreremos inevitavelmente, portanto, incompletos, imperfeitos, falíveis, o que nos coloca em movimento constante em busca de satisfação, à procura de uma completude possível, a qual podemos também chamar de felicidade. Seguindo o fundamento psicanalítico de que o desejo é constitutivo da nossa condição humana, o ciclo desejo-satisfação-novo desejo, tende ao “infinito” não fosse a inevitável finitude, concretização da nossa morte. Esta dura realidade, protegida dos nossos pensamentos cotidianos para que possamos seguir adiante, impõe que a satisfação do desejo, ou simplesmente a felicidade, é sempre transitória, efêmera, fugidia. Desejo satisfeito é certeza de novo desejo, pulsão de vida. Daí que a promessa da felicidade como uma condição de “chegada”, soa nonsense. Em última instância, não há satisfação do desejo, do mesmo modo, não há felicidade como sentimento permanente, promessa recorrente na lógica do capitalismo de consumo. Os desejos dão sentido à vida e não a sua satisfação.

O ciclo de novidade, inovação e renovação constantes, motor do capitalismo contemporâneo e das lógicas da moda, vende a satisfação, concretiza essa promessa no oferecimento de sedutoras mercadorias de felicidade facilmente acessíveis, mas se nutre, fortalece e se expande, na certeza do desejo infinito, ainda que não possa revelar esta artimanha.

 

 

Clotilde Perez

Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, é titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Ela é fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Ela apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.

 

 

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Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.