Na pele guardo as marcas e os produtos culturais

Por Academia & Mercado

04/08/2021 13h44

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Em seus shows, o cantor porto-riquenho René Pérez Joglar desenha no corpo protestos sempre referentes a América Latina. Fica sem camisa e agiganta as palavras através do corpo. No filme Livro de Cabeceira (1996), de Peter Greenaway, a personagem principal tem o corpo desenhado pelo seu pai, que faz pinturas que representam bênçãos. Um ritual que marca os momentos importantes da jovem para sempre.

Penso que a publicidade, antes de todas as manifestações, entendeu que a mídia legitima a tatuagem e nos mostra que existe um ritual próprio no momento da sua produção e do consumo. Algumas marcas utilizaram pequenos documentários sobre tatuagem e marcas. Exemplos disso são o sabonete Dove, a bebida Jägermeister, a loja C&A e tantas outras.

As tatuagens estão no espaço midiático. É só observar os processos de circulação midiática da tatuagem. Ao ouvir nossos entrevistados, percebemos que existem regras, rotinas, lógicas até a decisão do que tatuar. Além disso, há a criação artística e também as materialidades para se chegar ao desenho desejado.

A imagens desenhadas e estilizadas no corpo revelam memórias e afetos que estarão sempre na companhia de quem faz a tatuagem. Sempre admirei as tatuagens, e quando comecei a ouvir quem tatua, no avanço das minhas pesquisas, isso me surpreendeu ainda mais.

O corpo tatuado expressa gostos, estilos e estética e é o suporte para o registro de memórias e para a materialização de narrativas identitárias. Hoje existem novas técnicas e tecnologias empregadas no processo da tatuagem, que acompanham o crescimento e as exigências do mercado. As escolhas das imagens para adornar o corpo também mudaram ao longo do tempo. Essa nova personalização chega aos estúdios de tatuagem, que oferecem aos seus clientes a possibilidade de tatuar a imagem idealizada. É um trabalho artístico de criação conjunta, tatuador e tatuado, e, entre as imagens escolhidas, estão as marcas e os produtos culturais.

Você já pensou em tatuar uma marca ou um produto cultural na pele?

Antes mesmo de pensar uma tatuagem na pele, as pessoas pensam com muito carinho onde irão marcar o corpo e qual imagem tem vínculos de sentido para elas (TRINDADE; PEREZ, 2019). O corpo e a imagem tatuada podem representar um dispositivo do que sentimos e percebemos do mundo ao redor.

Por exemplo, a marca da Brastemp, com o símbolo do menino esquimó, as reclamações de Chico Bento da Turma da Mônica, a bebida Jack Daniel’s, o bonequinho da caneta Bic, desenhos animados, personagens da indústria cinematográfica, frases marcantes de algum filme ou seriado, bandas, fotos de cantores e letras de música. As imagens que circulam nessa arena midiática agora estão presentes na pele das pessoas e representam seus afetos, subjetividades, memórias e histórias de vida.

A imagem é ressignificada por quem tatua. Sei disso depois de ouvir muitos entrevistados por dez anos. Ouço, transcrevo as entrevistas e fotografo as imagens tatuadas e também visito suas casas, onde encontro elementos que remetem à tatuagem. Ao longo do tempo, construímos juntos um método de pesquisa e trabalho que vai além da imagem na pele. Buscamos, na etnografia participativa cotidiana, o que transborda em suas casas e vida a partir da escolha da tatuagem.

Nesse incrível itinerário, descobrimos que o boneco esquimó das marcas Brastemp tatuado atrás da perna de uma jovem tem conexão com sua história de vida e afeto com sua avó. Sua avó a esperava com a geladeira recheada de delícias. Mais tarde, ficamos sabendo, por seus relatos, que todos da família tinham tatuado algo no corpo que remetiam a avó. Nossa pesquisa fez com que ela se conectasse com essa informação, iluminando a matriarca da família.

Encontramos o desenho da logomarca do whisky Jack Daniel’s em dois entrevistados: um tatuou atrás do pescoço, e o outro nas costas. O primeiro nos contou que a imagem trazia a relação de carinho que cultivava pelo pai. O segundo associa a imagem do whisky com a seriedade, por conta do processo de maturação do whisky que é muito sofisticado. Os entrevistados têm em suas casas vários utensílios com a imagem do whisky, como copos, quadros, adesivos de geladeira, camisetas, toalhas e casacos.

Encontramos também várias tatuagens de Elvis Presley no corpo de um dos entrevistados, que é criador de uma banda de rockabilly de sucesso e tem uma coleção de todos os filmes do cantor e adereços em toda a casa. Sabe tudo sobre Elvis e continua fã número um de suas tatuagens e do cantor.

A cena de Alex com os olhos presos e abertos, personagem principal do filme Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick, está tatuada na perna de uma jovem e significa muito mais sobre ela do que sobre o filme. Ela nos diz que precisa ver a imagem para refletir sobre suas ações no cotidiano, fazendo uma conexão com a autoanálise. O personagem Night Elf do jogo de videogame World of Warcraft nas costas toda é a imagem que simboliza proteção na vida de um dos jovens entrevistados.

Outro jovem coleciona cinco lindas tatuagens de Amy Winehouse e tem tudo que remete a ela para embelezar sua casa. Fora isso, criou um grupo nas redes sociais para trocar informações sobre a cantora. Sonha em fechar o corpo todo com imagens e textos de suas músicas.

São muitas imagens e sentidos. Já buscamos os entrevistados após um período de tempo. A dinâmica do tempo fortaleceu o afeto. Sim, eles continuam amando seus desenhos na pele. Mostram também, no ambiente íntimo de suas casas, suas preferências e gostos, e acabamos por encontrar muitas imagens que remetem ao que tatuaram na pele na parede, no descanso do computador, na estante, nos pratos da casa e em tudo o que nos mostram.

Edgar Morin nos fala de um conceito de cultura constituída pelas representações, símbolos, mitos e ideias produtoras de crenças, valores, normas e memória histórica. Portanto, o nosso corpo, além de físico, é cultural. A existência é, antes de tudo, corporal; a experiência do corpo é a condição da existência social humana. Resgatamos essas imagens no cotidiano de nossas vidas: são muitas tatuagens que nos captam para mais uma entrevista e, assim, surgem novas histórias e a conexão com o mundo midiático e marcário.

 

Angela Pavan

É professora associada do Departamento de Comunicação Social – Audiovisual da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, docente e pesquisadora da Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN). Participa como pesquisadora do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação e Cultura e Consumo (GESC 3) da ECA/USP. É representante do Comitê Regional Nordeste da ABP2 (Associação Brasileira de Pesquisadores em Publicidade) do Propesq (ECA/USP).

 

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.