Depois da tomada generalizada da palavra criada pelas redes sociais que impactaram o poder de controle sobre as informações dos líderes de opinião e das instituições políticas e comunicativas e depois do protagonismo dos não humanos (M. Di Felice), possibilitados pela internet das coisas e pela disseminação de satélites e sensores, a introdução das linguagens sintéticas (B. Bratton) e simulativas (C. Accoto) passaram a ameaçar o poder único de fala dos humanos e seu domínio absoluto sobre a linguagem.
Como já compreendido com a crise climática e a última pandemia, o terceiro milênio apresenta- se como caracterizado pelo fim do monólogo do antropos sobre o mundo. O sapiens do terceiro milênio não habita mais a polis, isto é, uma sociedade composta apenas por sujeitos, mas um mundo interagente, cada vez mais conectado e hipercomplexo. As qualidades das transformações em ato nos obrigaram a uma virada epistêmica e, consequentemente, a uma alteração da nossa linguagem e dos conceitos que utilizamos para a compreensão do que chamamos de complexidade.
As linguagens sintéticas (B.Bratton) como a chatGPT e as outras formas de chatbot e de linguagens algorítmicas que já estão chegando (Bard, Claude, Sparrow etc.) nos mostram, mais uma vez, a insustentabilidade da oposição humano/ técnica, e o erro epistêmico da contraposição entre a inteligência humana (considerada como uma qualidade natural) e a inteligência artificial (supostamente produzida automaticamente pela máquina). Ao contrário, o que estas enésimas inovações indicam é o delinear-se ulterior de “ecologias conectivas” (Di Felice 2017) que desde 2009 venho definindo como “atópica” (“estranha”, “de difícil definição”, “nem humana nem técnica”, “nem natural nem artificial”).
Os pressupostos epistêmicos das “ecologias conectivas” (que encontram- se nas obras Paisagens pós urbanas 2009; em Redes digitais e Sustentabilidade 2012: em Net ativismo 2017 e em Cidadania digital 2021) marcam a superação da perspectiva “antropocêntrica” e “ocidentocêntrica” e podem ser aqui sintetizadas como a passagem da inteligência para as hiperinteligências:
1.A inteligência não é uma faculdade apenas humana
Não existe uma única forma de inteligência. Como demonstram diversos estudos na área da botânica e do “neuro-bio-vegetativo” (M. Shaldrake, S. Mancuso, E. Coccia); as plantas e os fungos, possuem formas adaptativas melhores do que aquelas dos animais. A inteligência humana tem suas especificidades, mas dizer que seja a melhor e a mais evoluída é questão de gosto. Uma espécie que destrói as diversas formas de vida do planeta, que põe em risco sua sobrevivência e que se autoproclama a mais inteligente, pelo meu gosto não é a mais inteligente mas apenas a mais violenta, a mais arrogante e a mais perigosa forma de vida do planeta.
2. A inteligência (animal, vegetal, humana ou algorítmica) no singular não existe.
Qualquer forma de inteligência(s) é sempre uma forma hiper-inteligente, em quanto simpoietica”s” e em quanto conectiva”s”. Todas as formas automatizadas e algorítmicas de produção de conteúdo (algoritmos cognitivos, assistentes virtuais, chatbot etc.) são relacionais e dialogantes. A autonomia (autopoiese) é uma parte mínima do processo que acontece em sua totalidade no âmbito de ecologias e em arquiteturas reticulares. Portanto é necessário superar a ideia da inteligência “cerebro-cêntrica”, “sujeito-cêntrica” o “computador-cêntrica” e substituí-la com uma ideia reticular e conectiva que podemos denominar hiper-inteligências.
3. As hiper- inteligências (nas suas diversas formas, humanas e não humanas) são sempre hibridas
A diferença das formas de inteligência considerada como uma elaboração subjetiva e autônoma, sejam estas humanas ou computadorizadas, geradas por bigdata, as hiper-inteligências, enquanto conectivas, são geradas sempre mediante conexões, resultado de interações ecológicas baseadas em “atos conectivos” (Di Felice 2017).
A capacidade da chatGPT e das linguagens sintéticas de responder simulando o diálogo humano, de produzir imagens, músicas, textos em vários formatos e estilos, de sintetizar, de traduzir, de criar conteúdo ou até de produzir linguagens de programação, são o resultado da conexão em rede de software, data base, algoritmos e conteúdos provenientes da várias fontes humanas e não. É uma rede hibrida e transorgânica a produzir os conteúdos e o conhecimento de uma chatbot.
4. As hiper-inteligências são “não-objetos”
Dizer que o humano é o único ser inteligente equivale a dizer que a espécie humana é a única forma de vida no planeta. É a episteme ocidental antropocêntrica, que inventa a separação do humano da técnica e da natureza e que cria ecologias simplificadas, compostas por sujeitos e objetos, a produzir a ideia e a gerar a ilusão da existência de uma “inteligência artificial”. Uma inteligência supostamente autônoma, separada e em competição com a inteligência humana, considerada também como uma “máquina” autopoietica e externa em relação a nós. Esta concepção analógica (do greco ava- luo “proceder separando”) e separatrice revela- se, hoje, como uma das principais matrizes do antropoceno e de sua ilusão suicida baseada na ideia do domínio do humano sobre a natureza e as tecnologias e no consequente ocultamento das biodiversidades e da técnica, reduzidas ontologicamente a matérias-primas, a ferramenta, a mercadorias e a objeto (do latim ob- iectum).
5. As hiper-inteligências são atópicas
Nas ecologias reticulares e nas hiperinteligências, assim como na bioesfera, e nas nossas interações com as chatboat, nos algoritmos e nos big data, não existe interno e externo (qualidade atópica). Como nas propriedades de um ecossistema, cuja delimitação é sempre uma simplificação arbitrária (A. G. Tansley), a qualidade conectiva estende o “interno” para o externo, puxando-o e alterando sua forma anterior. Como em nossos organismos, as “externalidades” nos abitam, nos produzem e nos transformam ao conectarmos as estas.
6. As hiper-inteligências são transorgânicas
Enquanto as diversas concepções de inteligências celebro-cêntrica são a criação de uma razão ontológica, identitária e dialética que opõe o natural ao artificial, o humano a máquina etc., as hiper-inteligências são criadas por redes conectivas. Estas não são o produto de agregações entre “actantes” (B. Latour) mas são, ao mesmo tempo, o produto e as produtoras de alterações transorgâncas, não transitivas, mas transubstanciativas (Di Felice 2017). Ao serem criadas pelas hibridações entre superfícies diversas (orgânica, informativa, material etc.) produzem alterações em suas qualidades originarias, gerando, assim, transformações e novos níveis adaptativos.
7. As hiper-inteligências são emergentes
Ao se desenvolverem em forma de redes conectivas, as hiper-inteligências procedem por acertos e erros e, portanto, tornam-se capazes de aprender. Assim como uma criança que não sabe já desenhar ao nascer, mas aprende e melhora com o tempo e a prática, desenvolvendo habilidades construídas através da conexão com o meio ambiente: o papel, o lápis, as cores, as articulações e as abstrações, os pais, etc.; as hiper-inteligências desenvolvem-se e mudam através suas capacidades de aprendizagem, por meio dos seus erros e da repetição de suas práticas.
Na lógica das redes conectivas, assim como no método cientifico, o erro é o meio através do qual torna-se possível o desenvolvimento. Portanto, se preocupar com a imperfeição das respostas dos primeiros modelos em circulação seria como julgar as qualidades de articulação discursivas e argumentativas de uma criança recém-nascida.
8. As hiper-inteligências que produzem as linguagens sintéticas são criadas pelo mercado
Como o livro (editoras), o cinema, a imprensa, a TV e tudo que existiu no âmbito das tecnologias, as linguagens sintéticas e as chatboat são expressões das redes conectivas do livre mercado, são por estes criadas e dependem destes. Necessitam de grandes investimentos e não podem ser separadas da lógica do lucro.
9. As hiper-inteligências não são completamente controláveis.
Todas as formas de ética e de controle absoluto do humano sobre a técnica, os data e as evoluções das linguagens informáticas, são expressões da mesma lógica e da mesma ilusão do domínio do humano sobre a natureza. Fruto da mesma visão “antropo e ocidento cêntrica” que está a origem do possível desaparecimento da espécie sapiens.
Assim como com os vírus e o clima é necessário fazer aliança (D.Haraway) e não dominar, regulamentar, controlar, pois por suas próprias caraterísticas ecossistêmicas e conectivas; tais “não-objetos” não são “externos” mas nos habitam, produzindo alterações em toda a rede ecológica.
10. A nossa época é uma época para pioneiros
Nem apenas humanas, nem apenas “artificiais” dadas suas formas reticular e conectiva, o que as interações com os algoritmos cognitivos e as chatbot irão a implementar é uma transformação qualitativa na forma de produzir e de acessar os conteúdos. Consequentemente, como já aconteceu em outra época com os livros e a eletricidade, estas irão a modificar, mais uma vez, a nossa ideia de conhecimento, suas ecologias e suas práticas.
Que as escolas, os ministérios, os diretores queiram ou não…, as novas gerações habitam um mundo conectado diverso daquele que nós habitamos. Seus sentidos são estimulados por redes, circuitos e ambientes digitais. Perante a tal transformação antropológica, transferir conteúdos velhos em formatos novos (digitais) não é suficiente. É necessário despertar-nos para o advento de inéditas formas de interações, acesso e produção de conteúdos produzidas em conexão e é em diálogo com linguagens e dispositivos diversos e com entidades não humanas.
A pedagogia do terceiro milênio não será mais a pedagogia da polis. Suas práticas não podem ser mais delimitadas ao diálogo e a formação apenas entre humanos. Algoritmos, Big data, biodiversidades, clima, vírus, são parte do nosso convívio, cidadãos e membros ativos do nosso comum e é com estes, e não mais sozinhos, que devemos passar a construir e a significar o nosso habitar.
Se a pedagogia das inteligências cerebro-cêntrica formava indivíduos e sujeitos autônomos, o advento das hiperinteligências nos obrigam a repensar a ideia e as práticas pedagógicas a partir da formação de ecologias conectadas. Não se trata mais de formar cidadãos, mas ecologias capazes de criar e implementar hiper-inteligências.
Cabe lembrar que neste desafio o Brasil tem em suas diversas culturas originárias grandes motivos de inspiração. Por exemplo, entre o povo Satere Mawe é difusa a concepção de que o conhecimento não provém do humano, mas da planta do guaraná. É somente se conectando a esta e tomando o chá de guaraná que o humano adquire conhecimento. Os povos Satere Mawe habitam mundos conectados e praticam, desde sempre, as hiperinteligências. Que sorte para os pedagogos, as escolas e as universidades brasileiras.
Massimo Di Felice
Professor titular da USP. Diretor do Centro Internacional de Pesquisa Atopos, bolsista produtividade CNPq, professor do programa de pós-graduação em Ciências Ambientais (Procam) e docente da Escola de Comunicações e Artes. massimo.atopos@gmail.com