O corpo visceral e estetizado: o grotesco continua se revelando na arte, na moda e na publicidade

Por Redação

05/06/2024 10h55

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Um torso tatuado com o peito aberto e com um coração também tatuado colocado em uma tigela à sua frente; ou formas orgânicas que remetem a entranhas brilhantes, servidas em louça como se prontas para serem jantadas. Cenas desconfortáveis e pouco usuais, mas esperando para serem vistas na SP-Arte 2024, a mais importante feira de arte da América Latina.

Trata-se das obras Coração, de Adriana Varejão, e da série Transfonges, de Erica Kaminishi. São duas de tantas outras obras que atraiam nossos olhares e que traziam o corpo humano em sua visceralidade para o universo da arte. Manifestações que podemos olhar a partir da ideia de grotesco.

Discutir o grotesco carrega grande complexidade pelo crescimento desse estilo e pelas transformações que ele passou pelos séculos. A palavra grotesco deriva do italiano grottesco, que vem de gruta ou cova, e surge para identificar um estilo ornamental utilizado em decorações e murais na Roma Antiga. Ou seja, inicialmente a palavra se relacionava a algo a ser escondido, enterrado, mantido distante da visão cotidiana.


São diversas as dimensões e efeitos do grotesco, mas uma forma que podemos compreendê-lo é como uma subversão das figurações clássicas do corpo humano, com valorização das vinculações materiais, dos orifícios, das partes baixas, mas também da alimentação e da dejeção. O grotesco tem intricada relação com o carnal e com o corpóreo, é o físico do ser humano que é protagonista nesse tipo de manifestação.
Victor Hugo, no prefácio para sua peça Cromwell em 1827, foi um dos primeiros artistas a escrever sobre a temática.

Nele, o autor aponta um tipo de poesia que surge a partir de uma visão de mundo cristã, uma poesia que enxerga na separação religiosa entre corpo e alma uma possibilidade de se expressar, de compreender que, nas palavras de Hugo, “o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”.

Enquanto o sublime é o elevado, o perfeito, o grandioso; o grotesco se impõe contra essa idealização do mundo, resgatando a corporeidade para evidenciar o que temos de mais concreto em nossas existências. O grotesco é uma catástrofe do gosto clássico. Isso significa que ele existe sempre em relação ao seu contexto, àquilo que é dominante, às representações que ocupam o centro de determinada cultura ou sociedade.

Não por acaso o grotesco ganha forças em períodos de crises de representações. Foi assim quando olhamos para a Divina Comédia (1314), de Dante, para O Jardins das Delícias Terrenas (1503-1515), de Bosch, ou para as obras de Shakespeare (séculos XVI e XVII). Mas também foi assim nos movimentos modernistas – quer maior glorificação da corporeidade do que quando Tarsila do Amaral coloca as longas, extensas e proeminentes pernas em Abaporu (1928)?

Quando nos deparamos com o contexto contemporâneo, principalmente no desenrolar do século XXI, as representações promovidas e colocadas em circulação pelas mídias digitais revelam outro momento de crise. As possibilidades de intervenções em fotografias, com filtros e edições, recortes em imagens, trocas de ambiências, ajustes dos mais variados… Tudo isso nos aproxima de representações sublimes, perfeitas, sem defeitos. Isso é somado e potencializado pelos avatares em metaversos, imagens em IA, deepfakes, personagens de games etc., que podem ser transformados em diferentes dimensões a bel prazer.

Mas enquanto esse tipo de representação explode na cibercultura, ela já estava presente na cultura da comunicação de massa. A publicidade, os filmes e a moda construíram um universo de circulação de imagens perfeitas, tenham elas adquirido essa característica pela pós-produção, tenha sido a presença de modelos e atores supridos de um robusto time de maquiadores, cabeleireiros, figurinistas etc.
O grotesco ressurge com maior expressividade contra a monotonia dessas manifestações.

Um exemplo está no relançamento da linha de maquiagens da Gucci ainda em 2019, a Gucci Beauty. As imagens da campanha mostram partes dos rostos das modelos, com grande exposição das gengivas e do interior das bocas: a modelo é irreconhecível em sua individualidade, exposta apenas pela corporeidade de sua boca.

Ou ainda quando a marca de maquiagens Fenty Beauty faz parceria com o coletivo de arte MSCHF, propondo uma mistura/ambiguidade entre maquiagem e comida, com a modelo com a boca lambuzada sugestivamente de ketchup na fotografia da campanha.

Na articulação com o corpo, o grotesco é o espaço onde cabe as paixões e os vícios, ele é luxurioso, guloso, pérfido. E é nesse espaço que as marcas se inserem, o espaço do prazer vinculado à carne. Mas tudo isso sem deixar de lado a estetização própria do mercado e da publicidade. Em Gucci, há proeminência das protuberâncias do corpo, mas o produto aparece com um recorte dedicado a ele, perfeito, inefável, encantador; em Fenty, a boca se envolve em ketchup-batom, mas a há joias no pescoço e nos dedos, a pele está perfeita, maquiada, com uma sombra que faz vibrar os olhos.

Tudo isso nos revela um importante jogo presente na estética grotesca, principalmente em suas relações com o mercado: o contraste com o sublime. O grotesco, por suas texturas, organicidades e materialidades, excita o olhar e colabora para que fiquemos mais sensíveis ao que o mundo nos apresenta.

Quando a cantora Doja Cat veste Schiaparelli em 2022 essa relação fica evidente: um sapato que mimetiza um pé, um brinco que mimetiza uma orelha, anéis que mimetizam unhas… Tudo isso em dourado e cravejados de brilhantes. É o corpo revestido pela riqueza do ouro e pelo requinte das pedras, é a valorização da corporeidade, a mistura do grotesco com o sublime. Um paradoxo que muito diz sobre nossos tempos.

Nos últimos anos, o grotesco vem também aparecendo em outras dimensões da vida cultural. Jogos entre humanidade e animalidade no filme Midsommar (2019), ou na forte cena de Triângulo da Tristeza (2022), em que vômitos e fezes aparecem com vivacidade em um barco apenas com pessoas das mais afortunadas financeiramente. O que nos mostra que os vínculos corporais existem em todo ser humano e não há elementos culturais capazes de fazê-los sumir. Ou seja: revela a tensão promovida pelo grotesco entre cultura e corporalidade.

Ou ainda na SP-Arte 2024 em que, ao andar pelos stands das galerias, podia-se observar uma diversidade de obras que tratavam da humanidade visceral, de entranhas e partes do corpo em suas proeminências; com materialidades das mais distintas: da valorização do dourado ao afeto do crochê. Mais uma vez, a estetização da corporalidade. Dessa vez com mais camadas de significação, uma vez que as peças estavam no espaço sacro (e também sublime!) das galerias de arte.

Cada uma dessas manifestações, todas em suas singularidades e com capacidades de gerar diferentes outros significados, nos mostra a potência da estética grotesca na contemporaneidade. Mas para além disso, nos revelam que o grotesco surge em momentos não cotidianos, ele não está ali para ser consumido de forma recorrente. Caso fosse, perderia seu impacto. Se o grotesco é a subversão das formas clássicas, ele tem dificuldade em ser mainstream, sob o risco de perder sua capacidade de choque.

As comunicações publicitárias de Gucci Beauty e de Fenty Beauty Ketchup possuem elementos do grotesco, mas são pontuais e os produtos vendidos seguem os mais altos padrões de qualidade e de beleza do luxo. Na moda, as roupas que dialogam com o grotesco estão nas passarelas e nos tapetes vermelhos, mas pouco tem aderência à vida vivida das pessoas. Na arte, o grotesco está nas galerias, para ser contemplado e sentido na higienização desses espaços.

Assim sendo, o grotesco como estilo nos fala da corporalidade, da carne e do visceral, daquilo que nos une como espécie, dos desejos e das paixões humanas. O grotesco como estilo excita nossos sentidos e traz relevo para a vida idealizada nas redes sociais, nos fazendo transitar entre o sublime e o corpóreo. Já o grotesco no mercado se vale de tudo isso para se afastar da monotonia e para gerar impacto, mas sempre em doses homeopáticas, sob o risco de se banalizar como o choque pelo choque.

Se em sua raiz etimológica, grotesco tem relação com algo escondido, o corpo ganha luz e é exposto no contemporâneo. Contra a idealização e o distanciamento das imagens midiáticas, a proximidade e a corporeidade do grotesco. Uma sensorialidade que nos excita para ver o mundo e uma humanidade visceral estetizada que nos aponta para o cansaço do belo e para a nostalgia do humano em um cotidiano povoado por telas.

Rafael Orlandini
Pesquisador da Casa Semio, mestre em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-USP e especialista em Cultura Material & Consumo: perspectivas semiopsicanalíticas pela ECA-USP.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.