O ilusionismo mágico dos algoritmos do consumo

Por Redação

09/12/2020 10h00

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Artigo

 

Hoje se fala muito de algoritmos, Inteligência Artificial (IA), capitalismo de plataformas. Esses fenômenos têm atravessado todos os setores produtivos da vida humana do trabalho e os nossos consumos. Isso se agravou ainda mais com a pandemia, contexto em que estamos fatalmente submetidos, que nos obrigou a uma existência digital em âmbitos maiores e mais intensos da vida cotidiana.

 

Por tabela, o fenômeno está diretamente associado às novas formas publicitárias de divulgar produtos. Quem nunca falou sobre um produto, marca ou serviço, próximo  ao  celular ou em conversas das redes (Whatsapp, Facebook, Instagram, Twitter, e-mails, entre outras) e de repente começa a receber em suas redes sociais digitais, mensagens publicitárias em timelines com informações recomendadas de marcas, produtos e serviços  curtidas por conhecidos, e-mails e outras possibilidades publicitárias? Essas mensagens nos surgem num passe de mágica.

 

Mas como já dizia a atriz/modelo Joana Padro, a Feiticeira, em um antigo comercial de tevê do produto para modelagem do corpo da marca Elisbelt: “Não é magia, é tecnologia!”. O trabalho dos algoritmos, via aprendizado de máquina, processa dados pessoais/cadastrais, dados sensíveis, dados de usos e consumos sobre funcionalidades de plataformas, rastreiam  termos, imagens que  permitem a organização da entrada e saída de dados no  favorecimentos de ações estratégicas institucionais de fixação de marcas e promocionais de vendas (dumping– promoções em preços mais baixos, configurando oportunidade imediata de compra), ao mesmo tempo que nutrem o condicionamento pela repetição de comportamentos identificados como padrões de consumo de grupos, a partir do tratamento dos dados de experiências de usos, criando efeitos de looping que  instigam  os indivíduos à repetição de cliques, visualizações e, sobretudo, ações repetidas de compra no varejo, em fluxo constante.

 

Isso tudo passa despercebido para a maior parte dos consumidores, que desconhecem os meandros do como isso é possível, demandando questionamentos: o que as redes digitais sabem de nós? Qual o limite para os usos comerciais dos nossos dados como consumidores? As problemáticas levantadas aqui são importantes, pois esbarram em desafios morais, éticos e da privacidade individual, ligados ao trabalho de gestão de dados no e-commerce, marketing digital, bem como das ações de comunicação das marcas (publicidade digital), pois se referem a um novo patamar do direito do consumidor que se conecta ao direito à proteção de seus dados.

 

Há pouco entendimento das pessoas sobre as naturezas dos dados e sobre o direito à privacidade desses dados nas experiências de usos dos consumos digitais. No primeiro caso, grosso modo, existem dados cadastrais dos registros pessoais para os usos de plataformas em geral (nome, idade, sexo, CPF, RG), existem dados da interface numérica, que configuram metadados digitais (sobre funcionalidades, armazenamento e processamentos de fluxos de entrada e saída de dados reais) que são de natureza técnica e que constituem a forma digital propriamente dita dos dados. E por fim, os dados resultantes de experiências de usos nos consumos de mídias e produtos, serviços via plataformas e dispositivos digitais.

 

Os algoritmos operam nas programações de processamentos de fluxos de dados, com mecanismo de machine learnig (aprendizado de máquinas) que, quanto mais avançados, conferem melhor qualidade na seleção e organização dos dados de usos e consumos como informações frente às intencionalidades programadas para as ações desejadas. A área de varejo e, por decorrência, a publicidade promocional, está bastante incrementada destes artifícios tecnológicos e como se trata de uma nova seara do consumo,  as discussões sobre os limites  de usos de dados de consumidores ganha uma nova dimensão, a do direito à privacidade  de dados, o segundo aspecto a considerarmos neste ponto da reflexão.

 

Essa discussão se torna premente porque se pode extrair dados das pessoas a partir de  uma infinidade de dispositivos digitais (brinquedos, smartphones, computadores, notebooks smartwatches, Smart glasses, jogos, aspiradores de pó, etc.), isto é,  dispositivos que  configuram as IoTs – Internet of Things (internet das coisas), os quais geram dados sobre nós pelos nossos usos que alimentam as tomadas de decisões de empresas,  que nem sempre nos informam que estamos  autorizando essa captura de dados. E outras vezes, nós consentimos ingenuamente essa autorização, prevalecendo, na visão como consumidores, a expectativa dos usos e funcionalidades dos bens que queremos consumir-experienciar.

 

Nesse sentido, cabe pontuar que o Brasil tem avançado nesta nova dimensão civilizatória do consumo, pois aprovou recentemente a Lei Geral de Proteção de Dados que entrou em vigor em 18/09/2020, com aprovação do Senado Federal.  Trata-se um marco legal que regulamenta o uso, a proteção e a transferência de dados pessoais no Brasil. A LGPD (Lei 13.709, de 2018) garante maior controle dos cidadãos sobre suas informações pessoais, exigindo consentimento explícito para coleta e uso dos dados e obriga a oferta de opções para o usuário visualizar, corrigir e excluir esses dados.  A Lei 13.709, de 2018,  tem 65 artigos distribuídos em 10 Capítulos. O texto foi inspirado fortemente em linhas específicas da regulação europeia, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR, em sua sigla em inglês). (Fonte: Agência Senado)[1]. Mas esse seria um ponto a aprofundarmos em outra reflexão.

 

O que nos interessa discutir mais, nesta ocasião, soma-se aos elementos tratados nos trechos anteriores, pela impressão de que as ofertas comerciais e publicidades no mundo digital parecem surgir como num efeito mágico, adivinhando o que o indivíduo pensou ou cogitou comprar.

 

O que há de novo e o que permanece nesta forma atual de fazer publicidade? A publicidade, desde a crítica à estetização do consumo pelas mercadorias de Karl Marx, colabora como meio eficaz para a fetichização das mercadorias. Isto é, trata-se de uma ação de investimento libidinal nos objetos de consumo, configuradora de dispositivos que despertam a presença do desejo humano sobre as coisas nos bens de consumo e que se faz incorporar esteticamente aos bens/marcas, por meio de um tratamento simbólico de suas formas comunicativas de existir para o consumo e para as lógicas de financeirização do capital.

 

Essa fetichização dos bens permite nos sentirmos seduzidos por objetos. Traço este que permanece e sempre  demarcará o lugar  de ação da publicidade como dispositivo acional dos desejos humanos de consumo, mas a tecnologia  dos algoritmos no consumo acrescenta a este processo,  na sua  possibilidade  técnica seletiva  e preditiva pela análise e  gestão de dados, um efeito mágico poderoso do mundo capitalista junto ao senso comum da maioria dos consumidores, o do reconhecimento  das vontades  de consumo, transformadas em desejos, que na ocultação da técnica, criam a ilusão da magia fetichizante que impregna nossos consumos. O mundo capitalista, ao menos no modo do parecer, diz saber o que precisamos ou o que queremos, um oráculo! Ora compulsório, pois nem o consultamos e quando consultamos via busca Google, Amazon, por exemplo, temos sempre uma resposta que busca se ajustar às nossas necessidades.

 

O desafio para se proteger a esse efeito de ilusão mágica é fazer valer o respeito à privacidade de dados nos usos e consumos digitais como valor ético, legal e cívico e oferecer limites aos efeitos mágicos da ação publicitária dos algoritmos, sob pena de não estarmos contribuindo para a conformação de uma sociedade de cidadãos-consumidores e darmos continuidade à perspectiva de reafirmação de consumidores-cidadãos como todos os prejuízos ao processo civilizatório que esta inversão de termos  na sua hierarquização neste caso traz. O mundo precisa de cidadãos consumidores e ilusões que não desiludam, frente às possibilidades de uma nova ordem das coisas e um futuro mais justo e igualitário. Dar ciência dos novos artifícios tecnológicos da publicidade é um dever para a consolidação do binômio cidadania-consumo.

 

 

Eneus Trindade

Professor Associado do Curso de Publicidade e Propaganda, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP). Membro diretivo da Compós e vice-coordenador do GP de Publicidade da Intercom.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.