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O touro frente aos valores: o reverso da moeda

Por Clotilde Perez

26/01/2022 08h30

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As estátuas e os monumentos são formas concretas que servem à construção da imagem pública, como observou o historiador Peter Burke em estudo sobre a “máquina de propaganda oficial” a serviço do rei Luís XIV na França absolutista. Essas peças esculturais permanecem como “heranças urbanas” e avançam sobre o espaço-tempo de outros cidadãos. Porém, recentemente, algumas delas passaram a ser questionadas, caso da  homenagem ao bandeirante Borba Gato em São Paulo.

Sem entrarmos no mérito da pertinência de tais movimentos revisionistas (entendemos que a sociedade civil organizada deve discutir, amplamente, cada um desses tributos cabendo-lhe a decisão democrática quanto à permanência, supressão ou reparação das homenagens históricas), aqui nos interessa repensar, sob a ótica propagandista e publicitária, a “Escultura Touro de Ouro” instalada no dia 16 de novembro  de 2021 na calçada em frente ao prédio da Bolsa de Valores, a B3, na rua XV de Novembro no centro histórico de São Paulo.

O projeto resultou de parceria entre a B3 e um economista, apresentador e influenciador digital. Executado por um artista plástico e arquiteto, o touro, reluzente por fora e oco por dentro, foi construído sobre uma estrutura metálica tubular com multicamadas de fibra de vidro nas seguintes dimensões: 5,10 m de comprimento x 3 m de altura x 2 m de largura.

Embora a proposta inicial fosse conceber um touro “original e totalmente brasileiro”, é inevitável a comparação com o “Touro de Wall Street”, a célebre instalação em bronze desde 1989 em frente à Bolsa de Valores de Nova York. O discurso oficial insiste em afirmar que o touro dourado tupiniquim representaria a “força do mercado financeiro e do povo brasileiro”, “um presente para a cidade de São Paulo” para “ser visitado gratuitamente”. Essa poderia ser apenas, talvez mais uma, atitude colonial de assimilação servil e resignada da hegemônica cultura norte-americana. Entretanto, o nosso touro provocou o seu entorno, mexeu com as redes digitais, tensionou e provou das leis do mercado.

O opulento animal, símbolo de fartura, riqueza, acumulação e machismo, tornou-se um acinte aos brasileiros em situação de insegurança alimentar, contrastou com o cenário urbano de penúria do centro paulistano assolado pela crise econômica e o desemprego. Tal imagem não poderia ter sido mais inoportuna em meio a milhões de brasileiros famintos e maltratados à cata de restos de comida nas lixeiras. A reação não se fez esperar. O lombo dourado foi pichado. Cartazes, ironicamente do tipo lambe-lambe, foram colados com a estampa “fome”, “taxar os ricos”. A fumaça de um churrasco para moradores de rua, iniciativa de uma ONG, provocou a memória olfativa e exarcebou a indignação dos transeuntes.

Nas redes sociais, o “touro brasileiro” reverberou como um tremendo mau gosto, pesado, desconjuntado, uma “projeção vazia de fartura, acumulação e machismo”, retrato da “subjugação ao capital financeiro global”. Em contraponto, o youtuber idealizador pediu à população que visitasse a estátua e fizesse doações de alimentos às entidades filantrôpicas que cuidam dos moradores de rua da região. Um detalhe que vale a pena destacar: no vídeo o patrocinador vestia camiseta com o mesmo logo do touro dourado que identifica o seu programa sobre o mercado financeiro.

Mercado este que tem as suas leis, sendo uma das mais consagradas o “direito do autor”. A mídia entãodenunciou a inconformidade da família e do agente do escultor do touro de Nova York que não autorizaram a reprodução. Outra regra de ouro é sobre a ocupação do espaço público nas metrópoles. Urbanistas e integrantes da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana (CPPU), órgão da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) da Prefeitura de São Paulo, colocaram o Touro de Ouro no brete. Entenderam não ser um evento temporário, como a Cow Parade, mas uma obra de arte, com todas as características de uma estátua, escultura ou monumento, e como tal, um objeto de propaganda. Ou, melhor, publicidade já que o touro dourado remete ao nome e à imagem de um dos patrocinadores da obra, a empresa de educação financeira que se identifica na placa ao pé da estátua.

Sem autorização para ser instalado, os órgãos da Prefeitura de São Paulo enquadraram e autuaram o touro dourado por violação dos artigos 39 e 40 da Lei Cidade Limpa. Por isso, a empresa que licenciou a estátua foi multada e a peça removida do local, exatamente sete dias após a sua instalação.

Sabendo-se que a propaganda e a publicidade têm natureza persuasiva e polimórfica (Jean-Marie Domenach), é esperado que se tangibilizem em soluções criativas, originais e ousadas capazes de atrair a atenção e levar à identificação do público-alvo. Ou seja, que ocupem espaço-tempo nas mídias físicas, eletrônicas e digitais, mas também que criem novos canais de contato e impacto. Seria o caso do touro dourado, imagem com excepcional poder discursivo, instalada no coração financeiro da maior metrópole brasileira.

Entretanto, a afronta à fome da população, a multa e a remoção deixam saldo negativo à imagem dos promotores e patrocinadores da estátua. O tourinho pecou ao economizar nos aspectos legais, burocráticos mas, sobretudo, ao violar as regras da publicidade, que paga para ocupar e exibir a mensagem-assinatura do anunciante, impedindo assim a investida da concorrência.

Dar-se em espetáculo, a custo ínfimo, gerar visibilidade, em espaço nobre, por sete dias consecutivos (período do processo nos órgãos municipais) pode ter sido a estratégia. Todavia, brilho demais ofusca. Ao gerar polêmica e repercutir em milhares de mídias, imagens, matérias, reportagens e artigos (como este!) a estátua torna-se um estratagema oportunista, consoante à sua estrutura oca, porém muito distante da sociedade que vem primando pelo ouro que é a busca de conteúdos relevantes via comunicação publicitária.   

 

 

Maria Berenice da Costa Machado

Professora da UFRGS

 

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.