Onde está (ou pode estar) a humanização na publicidade?

Por Redação

22/05/2024 09h10

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Vivemos hoje a febre da humanização na publicidade, no marketing, no branding, no mercado como um todo, enfim. Tudo deve ser humanizado: o produto, o serviço, o atendimento ao cliente, o relacionamento com os públicos, o processo produtivo, tudo. E não raro fala-se em nome dessa humanização sem qualquer pudor ou prurido diante da imensa vagueza, da gigantesca complexidade e do flagrante vazio que essa expressão pode conter – como se todos os supostos investimentos nesse sentido fossem a mesma coisa, tivessem a mesma natureza, cumprissem o mesmo papel ou gerassem os mesmos significados.

Da Lu do Magalu, que levou a figura da mascote de marca, devidamente fusionada à do assistente virtual, ao limite do fantasioso, a um jeito pretensamente mais gentil e compreensivo de tratar as pessoas que se relacionam com uma empresa, passando por práticas industriais menos nocivas ao ambiente e políticas corporativas menos cruéis aos funcionários, tudo vira humanização.

Ou seja: chama-se de humanização qualquer iniciativa que de algum modo passe por sentidos como o da bondade, do afeto, do respeito, da generosidade, da solidariedade, do acolhimento, da gentileza etc. Ninguém pode ter nada contra isso tudo – ainda que a gente seja obrigado a se perguntar: que mercado é esse que ajudamos a construir em que esses valores precisam ser tão fortemente perseguidos e tão estridentemente alardeados, em claro sinal da sua raridade ou ausência?

A questão é que a verdadeira potência humanizadora da publicidade não está naquilo que ela diz (seu conteúdo, como em uma frase bonita) ou naquilo que ela sempre serviu para fazer (vender, primeiro, vender). A publicidade pode ser radicalmente humanizadora – e miseravelmente desumanizadora – a partir do quanto ela puder estar impregnada de significados na sua malha linguageira, na sua camada sígnica. Explico.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, no livro Não-coisas, de 2022, reflete sobre o poder que as tecnologias digitais têm de transformar todas as “coisas” em informação. Ao converter tudo em dados, faz com que tudo se torne informação. E, ao impor sua lógica altamente individualizante justamente por essa informatização do mundo, compromete, enfraquece e inviabiliza as relações humanas. Nas palavras do autor, “hoje, Você é substituído por Isso em todos os lugares” (p. 101). Eis aqui a questão. “Você” talvez seja a palavra mais usada pela publicidade contemporânea. Feito para você, por você, para você, o que podemos fazer por você hoje, globo e você, a gente se liga em você, você conhece, você confia, sempre com você, porque você vale muito, você, você, você.

Só que “você” é pronome pessoal, serve para representar uma pessoa, um sujeito, um ser-humano, carrega, portanto, um forte sentido humanizador. E “Isso” é pronome demonstrativo, representando coisas, objetos, elementos não-humanos, portanto, tem sentido desumanizador. Ocorre que, mesmo coalhada de “vocês”, a publicidade pode ser terrivelmente desumanizadora, sobretudo quando ela deixa de indagar seu público como um sujeito complexo, híbrido de cidadão e consumidor, definido essencialmente pela sua capacidade simbólica, de atribuir e reconhecer significado nas coisas.

A publicidade esvaziada de significados, que se deixou converter em mera informação preconcebida, esconde por trás de cada cínico “você” o seu poder deformador da humanidade. Chama de “você” enquanto trata como “isso”. Essa publicidade degenerada, porque desprovida de significado, mensagem flutuante de um vácuo antigravitacional simbólico, mero discurso belo e sem sentido, é que verdadeiramente desumaniza. E, com ela, não há gentileza, bondade ou respeito que bastem.

Bruno Pompeu

Publicitário formado pela ECA-USP, doutor e mestre em Ciências da Comunicação pelo Sorocaba (Uniso) e dos cursos de publicidade da ECA-USP e da ESPM-SP. Sócio-fundador da Casa Semio

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.