Papai Noel comunista e o que não faz a falta de estudo?

Por Clotilde Perez

21/12/2022 10h00

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Uma das origens do Papai Noel remonta aos fins do Império Romano, com a desestruturação de seus fundamentos, trazendo como uma das consequências, a mistura das divindades, festas e mitos pagãos, com o Cristianismo. Nesse contexto de grande tensão, surge a lenda que buscava estimular a generosidade entre as pessoas. Haveria um velhinho pobre que ia de casa em casa, durante o rigoroso inverno da região, pedindo comida; as famílias benevolentes que o atendiam, gozavam de um inverno muito mais ameno.

 

Séculos depois, surge a mais consistente referência a origem do Papai Noel. Na Turquia, entre os séculos III e IV dC., viveu São Nicolau de Mira, um bispo cristão conhecido por sua generosidade e altruísmo, principalmente com as pessoas carentes. Além da total afinidade com as crianças, São Nicolau ajudava todos os necessitados, oferecendo dinheiro e melhores condições de vida. Além da bondade, disseminavam-se feitos fora do comum, reconhecidos posteriormente, como milagres pela Igreja Católica. Sua canonização se deu em 1947, pelo papa Pio XII. São Nicolau é o santo padroeiro da Rússia, da Grécia e da Noruega. É cultuado também pela Igreja Ortodoxa, Anglicana e Luterana.

 

Além disso, é considerado o padroeiro dos estudantes, com destacadas celebrações desde 1664, chamadas Festas Nicolinas, na cidade de Guimarães, em Portugal (https://www.cm-guimaraes.pt/viver/festas-nicolinas). Seus restos mortais encontram-se na cidade de Bari, na Itália, por isso é conhecido também como São Nicolau do Bari, bispo de Mira (https://www.vaticannews.va/pt/santo-do-dia/12/06/s–nicolau-de-bari–bispo-de-mira.html).

 

Já no século XIX, o religioso e professor americano de literatura grega, morador de Nova York, Clemente Clark Moore, escreveu para seus filhos o poema “Visit from St. Nicholas”, em 1823. Neste poema há referências ao Santo, com boa parte das características que ainda hoje encontramos no Papai Noel: velhinho, barba branca, bochechas rosa, com trenó e renas, presentes, chaminé…. Vejamos um trecho do poema:

 

O trenó cheio de brinquedos e São Nicolau nele também.

E então num piscar de olhos, ouvi no telhado

O toque-toque e o arrastar dos casquinhos.

Como um desenho em minha cabeça, assim que virei

Descendo a chaminé

São Nicolau vinha resoluto

Todo vestido de peles, da cabeça até os pés,

E com a roupa toda manchada de cinzas e carvão;

Um saco de brinquedos em suas costas,

Parecia um mascate ao abrir o saco.

Seus olhos – como brilhavam! Suas alegres covinhas!

Suas bochechas rosas, seu nariz como uma cereja!

Sua boquinha sapeca curvada para cima como num arco,

A barba em seu queixo tão branca como a neve;

 

Anos mais tarde, o cartunista e caricaturista alemão Thomas Nast (1840-1902), produziu várias imagens do Papai Noel, sendo uma delas publicada na revista Harper’s Weeklys, em 1881, acabou ganhando imensa publicização. Notam-se traços de um senhor velhinho, com barba e cabelos brancos, com bochechas proeminentes, barrigudo, com vários brinquedos pendurados e fumando cachimbo (como no poema de Clemente Clarke Moore). Em 2010, Nast foi reconhecido com a publicação do livro The Santa Claus’ Father, da editora Label, inclusive com tradução para o português.

 

A imagem do “bom velhinho”, gordinho e simpático, representa o altruísmo e os sentimentos de bondade e gratidão que deveriam invadir os corações humanos durante o Natal, data que celebra o nascimento do Menino Jesus. Ou seja, há um grande alinhamento entre os sentidos desejados pela tradição cristã, os vínculos com o nascimento de Cristo, o filho de Deus e a historicidade longeva de um velhinho bondoso.

 

Por séculos, as representações do bom velhinho ou mesmo de São Nicolau, traziam cores variadas em seus trajes, como azul, verde, marrom (em pinturas e desenhos), preto e branco, sépia (em representações de mídia impressa) e também vermelho, pelo vínculo com o manto de bispo que o Santo vestia (além da mitra e cajado).  Foi somente em 1931, com uma forte campanha publicitária da Coca-Cola que o Papai Noel ganhou seus trajes totalmente vermelhos, com acabamentos na cor branca. O desenhista Haddon Sundblom utilizou a imagem em um comercial da Coca-Cola, acrescentando um gorro e retirando o cachimbo, mas mantendo o saco de presentes (com referência ao poema de Clemente C. Moore). Evidentemente, havia uma grande conveniência na utilização da cor vermelha, uma cor icônica e identitária da Coca-Cola, por isso, tão reiterada em milhares de ações da marca ao longo de décadas e em todo o mundo. Assim, o Papai Noel vermelho não é uma criação original da Coca-Cola, mas é sim a Coca-Cola responsável pela disseminação desta imagem, que pela reiteração própria da Publicidade, criou um padrão que é reproduzido nos mais variados contextos.

 

 

A lenda do Papai Noel é cercada de imprecisões, até porque se não fosse assim, seria personagem da história factual, não lenda. Desde a origem, que supostamente teria sido na Turquia, se estivermos alinhados com São Nicolau, temos um total distanciando do que se prega na cultura americana, onde o Papai Noel mora no Polo Norte ou mesmo na tradição europeia, onde o “bom velhinho” vive em Rovaniemi, capital da Lapônia, Finlândia, inclusive com uma casa-escritório, criada em 1950, com imenso estímulo ao turismo local.

 

Assim, manifestações recentes que vestem o Papai Noel com as cores verde e amarela, possivelmente pelo temor à cor vermelha e um de seus vínculos, o comunismo, faz parte de uma espécie de negação aliada ao desejo de desvirtuar símbolos coletivos em favor próprio e gerar tensões. O mais surpreendente é a desfaçatez, pois o discurso segue afirmando os vínculos nacionalistas das cores verde e amarelo, que seria de todos os brasileiros, mas alinhadas a valores particulares, privados e individualistas e pior, atacando os princípios democráticos e republicanos. Papai Noel é comunista, porque usa vermelho! Uma recomendação: vá estudar! Leia e aprenda as origens, o crescimento sígnico e o inequívoco amalgama entre história, religiosidade e consumo que é o Papai Noel, aliás, bem capitalista! Ho, ho, ho…

 

Clotilde Peres

Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. 

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.