O fim da dominação das terras nas Américas aconteceu há séculos, e também na África, ainda que mais recentemente, no entanto, o pensamento, as práticas e as sensibilidades foram radicalmente impactadas nessas localidades colonizadas, promovendo uma hierarquia de valores nefasta, com a imposição da Europa como “entidade” superior, além de todas as mazelas provocadas e que nos chegam aos dias de hoje, com faces de extrema irracionalidade. É necessário e urgente reverter o único caminho construído pelo dominador, possibilitando uma outra história, ou melhor, outras histórias, no plural. É necessário porque foram vividas e é urgente porque o atraso e as dívidas são imensos.
A descolonização é a meta. O pensamento descolonial tem suas origens nas reflexões de intelectuais africanos e latino-americanos, que em primeiras referências, chamava-se pensamento “pós-colonial”. Catherine Walsh (2010, 2017), professora da Universidad Simón Bolivar, no Equador, e o grupo de estudos Modernidad/Colonialidad, ou Proyeto M/C, estão na origem do uso do conceito “decolonial” e não “descolonial”, em fins dos anos 90. Esta corrente de pensamento, acredita que o prefixo “des”, considerando a língua espanhola, não retrataria de forma adequada o que se pretendia, funcionando como uma espécie de negação.
Também no Brasil, o uso na palavra “decolonial” se disseminou, ainda que mais recentemente e, a partir de reflexões mais aprofundadas atinentes à língua portuguesa, com destaque para De Bona e Ribeiro (2018), compreendeu-se que o prefixo “des” instaura uma reversão, portanto, absolutamente adequado ao que o pensamento comprometido com o enfrentamento da condição colonial pretende. Assim, a proposta descolonial é de se desprender da lógica do pensamento único, eurocêntrico, e se abrir a múltiplas possibilidades, vozes, narrativas e perspectivas diversas.
Pressupõe o enfrentamento da episteme eurocêntrica, buscando a releitura e a reinstauração de conceitos, influenciando os modos de sentir, conhecer, agir e até mesmo, de viver. Assim, busca tensionar a lógica simplista que coloca as formas de pensar da Europa Ocidental como universais, portanto, válidas para todos.
O sociólogo peruano Aníbal Quijano (2000, p. 540), um dos expoentes do Proyeto M/C, resume os objetivos da decolonialidade da seguinte maneira:
“reconhecer que a instrumentalização da razão pela matriz colonial do poder produziu paradigmas distorcidos no âmbito do conhecimento e apodreceu as promessas libertadoras da modernidade e, com esse reconhecimento, realizar a destruição da colonialidade global do poder”. Nesse sentido, a proposta busca a sustentação de uma nova epistemologia que permita inaugurais formas de pensar e sentir a partir das margens, na perspectiva daqueles que foram oprimidos, ou como presenciei em um congresso na Europa em referência aos continentes americano e africano, a partir “das franjas do mundo”.
Para Peirce (1988), a semiótica é um outro modo de referir-se à lógica. Assim, a semiótica traz a perspectiva de construção dos conceitos teóricos a partir da experiência, reiterando o empirismo radical do autor. A efetivação do conhecimento, os passos do raciocínio deliberado, se dá a partir da percepção, possibilitando a consolidação dos processos de significação. Assim, o que pode ser compreendido só o é por meio de relações sígnicas e é aí que entra a semiótica, como fomentadora de novas formas de pensar, a partir da experiência vivida na realidade, não do discurso construído.
Se a semiótica de Peirce é uma lógica e se o objetivo da lógica é descobrir o modo pelo qual alcançamos determinada compreensão, que sempre se dará em signos, ela é o caminho efetivo para a reconstrução das novas perspectivas descentrando a tradição epistêmica eurocêntrica. A semiótica permitirá fazer das novas epistemologias brasileiras e latino-americanas e africanas uma estratégia política libertadora, oferecendo a fertilidade ilimitada da produção de significados aos quereres de uma sociedade que se pretenda ética, responsável e sensível.
Clotilde Perez
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.