Semiótica Epidemiológica do Falso

Por Clotilde Perez

24/08/2022 11h29

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O tema da verdade e da mentira é um clássico na história da humanidade. Estudado pelas diversas áreas, da Filosofia à Ciências fundamentais, reúne múltiplas perspectivas. Aquelas que entendem a mentira como inaceitável, como em Santo Agostinho até a admissão da possibilidade de múltiplas verdades como em Nietzche, com “a verdade do rebanho” ou em uma leitura atual, a verdade da bolha.

 

Na sociedade contemporânea, sem um eixo estruturante que estabiliza nossas vidas, com o crescimento e o transbordamento das mídias, a digitalização da vida e a valorização o indivíduo e sua subjetividade, fomos tomados pela profusão da informação, onde produção e recepção se fundem e o que toma a centralidade é o frenesi da circulação.

 

Todos produzem e consomem informação, sob o formato de contos, estórias, opiniões, chistes, memes, matérias e suas hibridizações… E a velocidade recobre de novas potencialidades esse enxame de manifestações verbais, visuais e audiovisuais. Nesse contexto, surgem muitos tensionamentos e, certamente, um dos mais complicados, pelos impactos na vida de todos, é a profusão de mentiras, que passamos a chamar de falsidades (falso, fake) e o estudo de seus impactos é um foco privilegiado das Humanidades em geral.

 

Desde a virada do século XIX para o XX e nos inícios deste novo século, a compreensão de que a mentira é parte da vida em sociedade, vinha tomando força. Freud e Peirce, apenas para citar dois pensadores referenciais e totalmente inovadores em suas ideias, apontavam para a busca da verdade, tendo em conta a certeza da impossibilidade de alcançá-la, uma vez que era constitutiva de signos, portanto, linguagem, e que como tal, estava em crescimento, era movente e nos escapava como totalidade definitiva.

 

A mentira como caminho para suportar a realidade nua e crua é tema central da Psicanálise. Mente-se para sobreviver; precisamos da fantasia, da imaginação até da ilusão para lidarmos com a concretude e a certeza da nossa finitude. Em Peirce, o falibilismo é o conceito central que constrói o paradigma que até mesmo a Ciência, o melhor caminho para a verdade, é falível, posto que novas investigações podem alterar paradigmas e preceitos até então compreendidos como verdade.

 

Assim, entramos no século XXI diante de um problema crucial que é como lidar com a mentira na presença cotidiana. Muitos autores têm refletido e procurado um caminho possível tanto para o entendimento da complexidade que o falso vem assumindo, quanto no sentido de criar caminhos para proteção e redução factível de seus impactos. Um dos textos mais significativos e originais que surgiu foi “Falso como vírus, uma epidemiologia semiótica”, do querido amigo e semioticista italiano Massimo Leone, professor na Universidade de Turin, publicado na revista Estudos Semióticos, v.18. n.2, 2022.

 

O entendimento de que o falso é fundamental em todas as áreas do conhecimento e também no convívio social, traz a certeza da sua presença, vejamos “O “falso” é um elemento central nas ciências naturais, nas ciências sociais e nas humanidades. Também é fundamental na sociedade, na economia, na política e no direito. Em última análise, é a principal força por trás da criatividade e fantasia dos artistas. Muitos estudos e investigações foram dedicados ao falso. No entanto, as novas tecnologias de comunicação digital estão mudando drasticamente o cenário. Alguns dos fenômenos mais perturbadores das sociedades modernas, da “pós-verdade” (post-truth) às notícias falsas (fake news), das teorias da conspiração ao “falso profundo” (deep fake), originam-se na encruzilhada entre as invenções tradicionais e os novos simulacros”. 

 

Nesse sentido, Massimo compreende o falso como um vírus, impondo a necessidade de desenvolvermos mecanismos de convívio, posto que é inevitável e o compreende a partir da perspectiva epidemiológica, o falso é um vírus “O principal desafio pela frente é, portanto, encontrar um lugar para a falsidade na ecologia humana dos sentidos. Aparentemente, uma semiosfera sem falsificação seria o ideal, mas não é factível… O falso é o equivalente cultural de um vírus”.

 

A inovação desta perspectiva tem o sabor da possibilidade de nos trazer alguma tranquilidade e também imensos desafios. Se é um vírus, não temos como evitar o falso, ao contrário, conviver com ele na vida social é o que se impõe e buscar caminhos para proteção do contágio nos leva às vacinas. Mas, importante lembrar que o que permite a sobrevivência e a proliferação do vírus, somos nós mesmos, em todos os casos.

 

 

Clodilde Perez

Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.

 

 

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.