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Muito se especulou, principalmente durante o primeiro ano da pandemia da Covid-19, sobre seus impactos no comportamento e nas relações humanas. Grosso modo, as previsões atestavam que, após o sofrimento, a tendência seria de estabelecermos laços mais fortes entre nós, de revisarmos nossa vida e nossos valores e, principalmente, sermos mais solidários e ativistas na busca de uma sociedade mais justa, com oportunidades iguais para todos, o que implica em melhores relações entre as pessoas, as instituições de todos os níveis e naturezas e o meio ambiente, pautadas na ética, no cuidado e na beleza. Seria uma oportunidade de nos revisitarmos diante de uma situação limite, um “ganho” da pandemia. Só que não.
Após dois anos de pandemia e, na verdade, sem nos livrarmos dela ainda, o que constatamos no dia a dia é justamente o contrário. O sofrimento com a apartação social e o isolamento, a doença, a morte e a estética da morte nos cercando, com as incertezas no mundo do trabalho para aqueles que tem trabalho e com os milhões de desempregados, muitos abrigados nas ruas, nos estacionamentos dos supermercados, nas praças públicas, com a economia esfacelada, com o ambiente sendo destruído por queimadas, ilegalidades, violências de toda a ordem e morte, e, no caso brasileiro, com o incentivo diário à estupidez, a moral reacionária e a prepotência vindos de lugares institucionais que deveriam zelar e exemplificar os melhores valores humanos, fica difícil. Se ampliarmos essa lupa em direção ao mundo, podemos trazer mais uma camada de horror, incluindo as guerras, da Siria com mais de uma década e a mais nova, a guerra na Ukrania, explicitando mentes criminosas obsessivas, a prepotência de uns e o delírio pueril de superioridade de vários.
Bom, o que resulta desta cena dantesca da qual fazemos parte? Cada um na sua… O produto do contexto “semsaída” não só nos impede de sonhar, condição fundamental para a nossa existência saudável, como trouxe o fortalecimento do total individualismo. O outro não existe. Não que o individualimo tenha surgido recentemente, já se vão alguns séculos desde o surgimento dos primeiros sinais de reconhecimento e valorização de cada indivíduo e de sua potência criativa e não mais apenas do coletivo, resultando na valorização das biografias (história de uma pessoa), dos auto-retratos, do relógio de bolso (o tempo já não era mais da igrega, mas do indivíduo), dos primeiros aparatos fotográficos e filmadoras, fazendo surgir os realizadores e tantos outros sinais e inovações espetaculares. O individuo empoderado: fundamental. Sem, no entanto, deixar de cuidar do outro que ao seu lado, também tem sua individualidade e que “ambos” devem conviver socialmente da melhor maneira possível – o valor da coletividae, do sentido público. Mas, o individualismo vivido hoje é muito pesado e nocivo. É o individualismo que esquece, ignora e apaga o coletivo, tornando-o intocável pelo que está fora dele, não que seja insensível, posto que os produtos, serviços e inovações têm permitido ampla valorização e acesso às estímulos e valorizações sensórias de toda a ordem, mas que sua sensibilidade não é atingida, quer seja pelas instituições, pelo meio ambiente, pelos animas ou nesmo pelas pessoas. A sensibilidade autocentrada. O individualismo do desespero. Parece que qualquer coisa fora do ser próprio não lhe diz respeito e que sua sina é garantir a sua sobrevivência e, evidentemente, dos seus imediatos.
Um auto-cabresto que reprime a humanidade sensível de cada um e estimula a marcha em linha reta, que não garantirá qualquer conquista além da miséria psíquica; ao contrário, levará à morte, pelo menos simbólica. Cada um por sí é o limite do fim e não a salvação.
Qual é a saída?
A ética, o cuidado e a beleza; de outro modo, a verdade, a solidariedade e a arte.
Mas não está fácil!
Por Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, é titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Ela é fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Ela apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.