Só dói quando eu respiro – ou a praga das expressões vazias (e perversas)

Por Redação

08/05/2024 09h00

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Quando é que foi que a gente resolveu perder de vez a vergonha e decidiu assumir, da forma mais cínica possível, que o que se faz em marketing e em publicidade é, no fim das contas, mera exploração – exploração, em essência, da carência humana, da natureza oca, frágil, ingênua, crédula, angustiada e pronta para ser iludida de cada ser humano? Quando teria sido, precisamente, não se sabe. Mas que um passinho importante nessa caminhada rumo ao asqueroso foi dado recentemente, quando alguém começou a falar em “dor” do consumidor, isso foi.

Como muitas das coisas pútridas que se fazem e se dizem no marketing, a tal da dor do consumidor foi pensada originalmente em inglês: “pain point”, com a gracinha da aliteração e a sutileza da ideia de “ponto”. E daí serve para tudo: eu quero me empanturrar de chocolate mas não quero engordar e tenho medo de ficar diabético (fora a pele, que não pode ficar lustrosa); preciso cuidar dos dentes mas não gosto de perder tempo no meu cada vez mais curto intervalo de almoço (e ainda preciso me informar pelo Twitter); todo mundo diz que eu devo ficar mais com meus filhos mas eu não quero abrir mão de malhar (porque a gente não pode perder a vaidade só porque tem filho); o Tobby ama ração pastosa, que eu sei que faz mal se der todo dia, mas eu não aguento ver a carinha dele me implorando (e só quem é pai de cachorro vai entender).

Então vêm a barra de chocolate que nem é de chocolate, mas parece chocolate e quase não engorda; o aparelhinho de jato de ar que custa caro, precisa de bateria e libera uma das mãos para você poder limpar entre os dentes enquanto mexe no celular; a academia de ginástica com espaço (e monitores) para que seus filhos fiquem vendo você correr na esteira; e alguma coisa que sacie o seu cachorro, na verdade saciando você e talvez degenerando por completo a natureza do pobre bicho.


O consumidor não pode ser definido como alguém que sente dores, como um ser desejante de analgésicos compráveis aos mais variados custos – aspirinas deliciosas, tilenóis do último tipo, buscopans exclusivos. É verdade que muito do que nos leva a querer comprar isso ou aquilo é, lá no fundo, a profunda, essencial e incurável dor da existência, daquela faísca de consciência, que a toda hora nos pinica, de que nada aqui tem sentido. Mas chamar de dor, numa agência de publicidade ou num escritório de marketing, o que não passa de mera vontade ou sincero desejo significa também tornar ainda mais distante e impossível o alívio da verdadeira dor.

Cada vez que fingimos acreditar que um produto muitas vezes banal está curando a dor de alguém, contribuímos um pouquinho mais para a aniquilação do que há de humano nas pessoas e para que os princípios do consumo se sobreponham a tudo mais.

A frustração, o remorso, a culpa, a saudade, a angústia, o medo, a incerteza, o arrependimento, a desgraça e a desesperança não se resolvem ou se superam com batons, biscoitos, viagens, roupas e remédios.

Este é o problema da importação e do uso impensado dessas expressões da moda inventadas sazonalmente pelo marketing. Elas ocultam em seu invisível significado uma certa visão de mundo, uma forma específica de enxergar as pessoas, um jeito de existir socialmente, que, nesses casos, ignora ou contorna qualquer limite moral, humano ou ético para saciar a ganância de alguns poucos na base da exploração, da mentira e da crueldade.

E o que dói são os ouvidos, o coração e a consciência dos que escutam essas maldades por aí, reconhecem o sórdido, mas não têm o que fazer. Eu tenho: eu dou aula, escrevo e não digo que o consumidor tem dor.

Bruno Pompeu

Publicitário formado pela ECA-USP, doutor e mestre em Ciências da Comunicação pelo Sorocaba (Uniso) e dos cursos de publicidade da ECA-USP e da ESPM-SP. Sócio-fundador da Casa Semio

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.