Por Mirela Perez, doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA USP, mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e designer de moda
Em outubro de 2018 a Victoria’s Secret levava para as passarelas seu derradeiro show, marcando o fim de uma era e o início de um hiato que duraria 6 anos. A despedida do evento anual não foi uma escolha feita ao acaso, e sim uma resposta ao espírito do tempo, já que o ano coroou o que seria uma confluência de fatores sociais, políticos e econômicos que mudariam a percepção sobre a mulher, o corpo e a sexualidade: no contexto feminista, a quarta onda, caracterizada principalmente pelos ideais de empoderamento e ativismo de redes sociais, se consolidava; em 2017 o movimento norte-americano me too, que nasceu no Twitter, impulsionava denúncias de assédio sexual ao redor do mundo; e no cenário da moda, a diversidade tornou-se um ideal a ser cobrado pelo público e ostentado pelas marcas.
O mundo e o mercado pareciam caminhar para um lugar mais justo com as mulheres, e simultâneamente à ascensão da Savage X Fenty de Rihanna, sua estética baddie, multiplicidade de corpos e sensualidade vista da perspectiva feminina, a ex gigante marca de underwear perdia popularidade e acumulava críticas.
Através de um breve recorte da presença publicitária da Victoria’s Secret, é possível entender a decadência da marca que outrora fora ditadora dos costumes sobre o que e quem é sensual, mas, para isso, é preciso manter em mente o conceito de male gaze, ou, do português: perspectiva heterossexual masculina. O desfile que inaugurou a tradição anual fora anunciado em 1999 durante a final do superbowl, com os dizeres “Os broncos não estarão lá, os Falcons não estarão lá, mas você não vai se importar” enquanto mulheres de lingerie apareciam nas telas do estádio. Em 2008, a brasileira Adriana Lima (27 anos) de lingerie, em um quarto branco, com cabelos esvoaçantes e olhar penetrante brincava com uma bola de futebol americano, ao passo que os dizeres “a VS gostaria de lembrar que esse jogo logo vai terminar, que os verdadeiros jogos comecem, feliz dia dos namorados” irrompem a tela; em 2015 em uma versão menos hiperssexualizada, 5 das mais famosas Angels jogam futebol americano ao som de uma música épica, ao final, elas tiram os capacetes e, com os cabelos novamente ao vento, o letreiro diz: “Não coma bola, o dia dos namorados está chegando”.
Seja com o objetivo de provocar desconforto e insegurança nas namoradas e esposas dos espectadores do Super Bowl, seja por apresentar a lingerie como uma peça que deve servir aos interesses do outro, ou por equipará-la a uma joia a ser presenteada em uma data especial, a produção de sentido na publicidade da V.S. sempre colocou o homem como receptor da mensagem, ainda que ele não fosse seu público alvo. Além da propagação de padrões irreais de beleza, as discussões que cresciam ao final da segunda década do séc XXI direcionavam seu olhar crítico para uma marca que lucrava com a insegurança promovida, desenvolvendo toda a sua identidade em torno do que o público masculino achava sexy, sem realizar nenhum esforço em fazer as consumidoras se sentirem sexy de fato; a Victoria’s Secret precisava de uma mudança.
No dia 15 de Outubro de 2025 às 20h, o Victoria’s Secret Fashion Show ganhou novamente os holofotes; sob a direção executiva e criativa de Adam Selman, o desfile marcou a segunda edição desde a escolha mercadológica de retornar ao formato icônico tradicional do evento. Responsável por figurinos de Rihanna, Lady Gaga, Michael Jackson e Gwen Stefani, Selman cumpriu com a expectativa de trazer mais inclusão e glamour para nova coleção, conceito perpetuado com a presença do designer franco-americano Joseph Altuzarra, que assinou peças especiais e introduziu o legado da alta costura para o desfile.
O show foi transmitido ao vivo em plataformas de streaming e lives nos perfis oficiais da marca no YouTube e TikTok; a proposital ilusão de proximidade que a dinâmica das redes sociais permite, desencadeou uma série de reações, comentários e críticas. Faz-se necessário ressaltar que a lingerie, enquanto peça ligada ao imaginário sexual, produz um efeito de sentido conflitante e subjetivo onde crenças acabam por enevoar a percepção, e a resposta do público foi sintomática desse valor simbólico: algumas páginas e influencers criticaram que a presença de corpos diversos apesar de existir, não era o suficiente, revolta que destoa da realidade quando olhamos para a semana de moda e percebemos que este requisito não é cobrado e nem cumprido por nenhuma outra marca; nas redes sociais, algumas “fãs saudosas” disseram ter representatividade demais, fato que atrapalhou o glamour, ainda que o conceito confira a ideia de luxo e exclusividade, e nada mais luxuoso do que peças de alta costura com cristais e plumas. Numa espécie de confusão sadomasoquista, inúmeras foram as declarações em perfis de portais de moda nas redes que diziam “amar o resultado” e que “passariam as próximas semanas sem comer”.
A reestruturação e repaginação da imagem popular do V.S. Fashion Show partiu das críticas feitas em meados de 2018, movimento que torna a contratação de Adam Selman – ex diretor de design da Savage X Fenty – um movimento simbólico dessa atenção, ainda que atrasada, ao contexto; o problema é que o contexto mudou mais uma vez, e, diferentemente de uma onda anterior que parecia guiar a lógica para um senso comum, agora, a percepção geral é formada por diferentes corpos d’água que desembocam em um rio agitado de correntes contrárias, onde o único senso comum parece ser a impossibilidade de agradar a todos.
