Benfica dos Pressupostos: Cenários

Por Redação

27/05/2024 08h40

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Marcam-se quatro anos desde um encontro casual no Raimundo dos Queijos, em 2018, quando cruzei com o saudoso professor de geografia do antigo 7 de Setembro. Felizmente e lucidamente ébrio, o professor Elmo presenteou-me com a mais eloquente definição de cidade: “Cidade é um lugar de encontros”.

Retornando às vias que me remoldam Fortaleza, advirto que o tempo parece ter deslizado amenamente sobre elas, preservando seu cenário quase inalterado. Nas esquinas da Parquelândia, os cicios das histórias de um Benfica que já foi, de uma era que se exprimia com a inocência da juventude, ainda ecoam. O “Ceará muleque”, do professor Wagner Castro persiste. Remeto referências do primeiro plano de voo que esbocei em última croniqueta. Verso sobre o primeiro ponto de uma Estratégia de Planejamento de UX: Cenários.

Defendo a tese de que os cenários são, em essência, Zonas de Pressupostos. Invocam o espaço, delineando os contornos de uma área que muitos optam por chamar de território. Reivindico esse conceito como entrelaçado às minhas reflexões sobre a Estratégia de Planejamento de UX. Assim como as ruas de Fortaleza, anseio que o cenário seja vivenciado, compreendido e valorizado em sua genuinidade simbólica. Mais do que isso: é um conjunto de Zonas de Pressupostos, transcendendo a mera cronologia de um calendário promocional.

Em Alfred Schutz On Phenomenology and Social Relations (1970), traduzido pela Zahar em 1979, o capítulo Atenção Seletiva: Relevância e Tipificação explora a zona de pressupostos como um setor do mundo que, diante de um problema prático ou teórico específico, não parece exigir investigações adicionais, apesar de sua estrutura não ser plenamente conhecida. Essa zona é percebida através da experiência e interpretação de pessoas confiáveis e é transmitida via educação informal.

Elucido que cenários, enquanto zonas de pressupostos, acodem o planejamento de pesquisa, considerando sistema de relevâncias, sistema de tipificações e sistema de interesses. Explico como esses conceitos se relacionam com a utilidade dos cenários em Estratégia de Planejamento de UX:

Zona de Pressupostos e Planejamento de Pesquisa: A zona de pressupostos é um setor do mundo que não parece exigir investigações adicionais em um dado momento. Ao criar cenários, as pessoas pesquisadoras podem desafiar essa zona, identificando áreas que podem ser mal compreendidas ou negligenciadas e que podem ser cruciais para a compreensão de um fenômeno.

Cenários enquanto Sistema de Relevâncias: Schutz descreve diferentes zonas de relevância que variam de primária a absolutamente irrelevante. Ao planejar a pesquisa, os cenários podem ajudar a determinar quais áreas são de relevância primária e, portanto, merecem atenção imediata, e quais podem ser consideradas menos urgentes ou irrelevantes. Especialmente, na exemplificação de símbolos da timeline planejada, dos irrelevantes aos mais relevantes.

Cenários enquanto Sistema de Tipificações: As tipificações surgem da experiência cotidiana e influenciam como entendemos o mundo. Tal retorno ao centro do Ceará, reconhecer ou estranhar os cenários podem ajudar a identificar e questionar essas tipificações, levando a uma compreensão mais profunda dos fenômenos estudados e evitando a aceitação acrítica de categorizações estabelecidas.

Cenários enquanto Sistema de Interesses: Os interesses humanos moldam as zonas de relevância. Cenários podem ser usados para explorar como mudanças nos interesses podem alterar o que é considerado relevante, ajudando os pesquisadores a antecipar e se adaptar a essas mudanças em seus planos de pesquisa. Não sou mais do cenário do grupo dos “meninus” do colégio, pois não há mais interesses comuns.

O que digo é:

As tipificações, que dão origem à zona de pressupostos, emergem da vivência cotidiana dos grupos sociais e precedem a educação formal. A zona de pressupostos é mister para a exploração do desconhecido, servindo como ponto de partida para a redescoberta do mundo, como no estudo de um tema específico.

Schutz destaca que a zona de pressupostos também está sujeita a questionamentos, pois a pessoa humana opta por investigar o que é comumente aceito. O interesse humano, tal exemplo supracitado dos grupos de colégio, segmenta a zona de pressupostos em zonas de relevância variadas, relacionadas ao interesse em questão. As zonas de relevância são moldadas pela busca individual do conhecimento, enquanto a zona de pressupostos é transmitida através de um sistema de ensino não formal, criando as condições para o surgimento das zonas de relevância.

Schutz categoriza as zonas de relevância em quatro níveis, com a relevância primária sendo a parte do mundo imediatamente observável e sujeita ao domínio humano. As zonas de relevância menores são áreas indiretamente ligadas à relevância primária, fornecendo instrumentos e condições para alcançar objetivos humanos. As zonas de relevância relativamente e absolutamente irrelevantes são aquelas que, respectivamente, temporariamente ou nunca influenciam os interesses principais dos seres humanos.

O sistema de interesses, que dita a criação das zonas de relevância, é diversificado e mutável, interligando-se em sistemas intrínsecos e impostos de relevâncias. As relevâncias intrínsecas são estabelecidas por nossas escolhas e ações, enquanto as relevâncias impostas são aquelas que devemos aceitar, pois não surgem de nossa vontade. Ainda pode-se aferir em Schutz as seguintes questões a serem pontuadas em Estratégia de Planejamento de UX.

Flexibilidade e Adaptação: Ao reconhecer que a zona de pressupostos e as zonas de relevância estão sujeitas a mudanças, os cenários permitem que os pesquisadores sejam flexíveis e adaptáveis em seu planejamento, preparando-os para revisar suas abordagens à medida que novas informações emergem.

Educação e Transmissão de Conhecimento: A zona de pressupostos é transmitida através da educação informal. Cenários podem servir como ferramentas educacionais para transmitir conhecimento sobre como diferentes relevâncias e tipificações surgem e como elas podem ser questionadas ou reforçadas em contextos de pesquisa.

Influência Social e Cultural: O sistema de relevâncias e tipificações é profundamente influenciado pelo contexto social e cultural. Cenários podem ajudar os pesquisadores a entender como esses sistemas variam entre diferentes grupos sociais e como isso pode afetar a pesquisa e a interpretação de dados.

Finalizo este croniqueta, defendendo que a ordem dos domínios de relevância em um grupo social tem sua própria história e é frequentemente institucionalizada. Esses domínios são heterogêneos e não podem ser medidos uns contra os outros. A estrutura de relevância e a ordem dos domínios são fundamentais na dinâmica dos conceitos de igualdade e desigualdade aceitos por um grupo social.

O sistema de relevâncias está intimamente ligado ao sistema de tipificações, que é uma herança social transmitida através da educação formal e informal. A tipificação de objetos e eventos está profundamente relacionada aos nossos interesses e ao sistema de relevâncias. Considerar os símbolos visíveis e menos legíveis na Estratégia de UX é fundamental nas releituras dos cenários.

Acabo evocando o professor Elmo onde a “Cidade é um lugar de encontros” e dos “desencontros”. Das tipificações lúcidas e já apagadas pela irrelevância das priorizações. Os cenários de um sistema de interesses influenciam o sistema de relevância e de tipificação, que por sua vez influencia a zona de pressupostos. Esses elementos são determinantes dos modos de socialização dos grupos humanos, e o cenário, como uma Zona de Pressupostos, é um componente original na estruturação de nossa experiência e compreensão do mundo.

Kochav Nobre
Auditor de pesquisa na Ernest & Young
Kochav Nobre é auditor em pesquisa na Ernst & Young (EY). Professor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisador visitante do Zentrum für Medien- Kommunikations- und Informationsforschung (ZeMKI) da Universidade de Bremen na Alemanha (2022) e Max Kade German-American Center da Universidade de Kansas (2018). Graduado em Publicidade pela Escola Superior de Propaganda em Marketing, mestre em Sociologia e doutor em Estudos da Mídia.Possui mais de dez anos de experiência em pesquisa e oito anos em docência. Inventor do software Qualichat, desenvolvido em seu pós-doutoramento na UNICAMP, entre 2020 e 2022. Fundador do Ernest Manheim Laboratório de Opinião Pública.