BTG: As duas metades

Por Redação

15/09/2025 16h50

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Pululam no Brasil os aplicativos de contas globais, cada qual prometendo atalhos ao mundo financeiro. Nesta croniqueta volto-me à conta internacional do BTG, examinando-a sob a lente de conceitos fenomenológicos mais delicados. Exprimo o tempo necessário que une uma metade distante de outra. Dois anos transcorreram desde que abri a conta global no BTG. O gesto, à primeira vista administrativo, converteu-se em exercício fenomenológico. Não se tratava apenas de acessar um aplicativo bancário, mas de instaurar um diário de experiência em que uma metade se deixava reunir à outra. O saldo, antes mera cifra, emergia como intencionalidade: cada transferência dirigia-se a um “outro lado”, instaurando uma abertura que excede a moeda.

A fenomenologia, recorda Levinas em sua leitura de Husserl, exige suspensão do natural para que a consciência se exponha à sua própria tessitura. O BTG, no seu prosaísmo, força-me a algo análogo: suspender o hábito de ver números como abstrações e apreendê-los como fenômenos constituídos. A cada extrato, não contabilizo cifras, descrevo modos de presença. Um segundo cartão que se aparta do primeiro, duas metades que se espelham sem nunca se fundirem. Em uma tela, operações circunscritas, repetidas como um refrão. Sim, é nesse labor reiterado que se condensa a experiência eidética: ver o saldo como resto, como essência depurada de um gesto pretérito.

Não há milagre, há costura. A cada operação percorro fases que lembram a própria evolução da fenomenologia: primeiro, o realismo das cifras tangíveis; depois, a constituição transcendental do valor; por fim, a historicidade existencial do ser-no-mundo financeiro. O aplicativo, vilipendiado por quem o reduz a mero meio, oferece-me um lenitivo metodológico: converte o banal em exercício de atenção.

Levinas, ao comentar o capítulo inaugural de Ideias I, lembrava que a fenomenologia não se oferece como sistema já fechado, mas como abertura permanente, um convite ao ofício filosófico. Guardo essa lembrança ao reler meu próprio extrato: o BTG não encerra totalidade alguma, apenas convida à continuidade do gesto. Cada saldo não se reduz a cifra imóvel, somatório de entradas e saídas. É antes uma intuição eidética: essência que se deixa entrever, supratemporal, no vaivém das moedas. O câmbio pode oscilar, a transferência pode tardar, mas o que se mostra, sempre, é a mesma estrutura de experiência: promessa que projeta, expectativa que suspende, limite que contém. Não é apenas registro contábil, mas o traço essencial de um resto disponível, presença que se inscreve e persiste no instante mesmo em que a consciência o apreende.

Se em 1929 a lição era a suspensão eidética, em 1939, em Freiburg, a advertência era clara: a fenomenologia só se cumpre quando retorna ao vivido. Também aqui, o BTG repete a lição. Uma transferência que tarda, um câmbio que oscila, uma notificação que interrompe: não são ruídos, mas o modo como a essência se encarna. O fenômeno não se salva na abstração, mas no concreto que se impõe, como espaço vivido da moeda.

Assim, percebo o alcance da fórmula: o mundo não existe em si, mas como consciência-de. Nenhuma cifra paira independente; só aparece quando se dá à consciência, constituída no ato de ser vista, intuída, reinscrita. O saldo é “em pessoa” que se apresenta à tela, não como coisa bruta, mas como presença interpretada, devolvida à experiência de quem a vive.

E é aqui que a croniqueta encontra seu fecho. Dois anos de conta global ensinaram-me essa lição husserliana pela via mais insuspeita: um aplicativo bancário. Nenhuma tela se sustenta sozinha; todo número é consciência-de. Não se trata de acumular ou de converter, mas de testemunhar esse movimento silencioso entre contingência e essência, entre o fluxo cambial e a evidência momentânea.

Por isso digo: o BTG é metade. A outra metade sou eu, consciência que, ao suspender a ingenuidade da atitude natural, reencontra no extrato um convite. Convite não a consumir, mas a pensar. Convite não a fechar contas, mas a abrir horizontes. Como lembrava Levinas, a fenomenologia não encerra, convoca; e cada saldo, no seu resto mínimo, é também essa convocação a um trabalho contínuo, que ainda se escreve, linha por linha, no meu reclame fenomenológico.

Kochav Koren
Professor adjunto e pesquisador do PhD de Retórica na Duquesne University
Kochav Koren é professor adjunto e pesquisador do PhD de Retórica na Duquesne University, professor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais, pesquisador visitante do Zentrum für Medien- Kommunikations- und Informationsforschung (ZeMKI) da Universidade de Bremen na Alemanha (2022) e Max Kade German-American Center da Universidade de Kansas (2018). Foi auditor em pesquisa na Ernst & Young (EY). Graduado em Publicidade pela Escola Superior de Propaganda em Marketing, mestre em Sociologia e doutor em Estudos da Mídia. Possui mais de dez anos de experiência em pesquisa e oito anos em docência. Inventor do software Qualichat, desenvolvido em seu pós-doutoramento na UNICAMP, entre 2020 e 2022. Fundador do Ernest Manheim Laboratório de Opinião Pública.