Diário da experiência

Por Redação

28/04/2025 14h31

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Inicia-se uma nova série de croniquetas, alusivas à experiência vivida pelo autor em jornadas de utilização pessoal de aplicações. Refere-se ao período em que atuei como gerente de pesquisa numa startup do BB Seguridade. Trata-se do Diário de Experiência, uma metodologia que constrói casos de uso a partir de um roteiro pré-estruturado das vivências in loco de aplicações.

O método articula as aplicações de Erving Goffman sobre os quadros gerais da experiência, vividos em ancoragens (anchorages), aquisições de jogos e inícios de temporalidades que moldam as ações; tons (key/keying), ritmos das ações relacionados aos tipos de funcionalidade em uso, que modulam os tons da jornada; laminações (laminations), preparação para o ato de pressionar o botão, em sua ginga gestual; e fabricações (gabrications), encenações que simulam atos e criam aparências.

O planeamento estratégico de UX Research que delineei, estruturado em oito estádios — Cenários, Objetivos, Alcance, Consciência, Tática, Execução, Aprendizagem e Interiorização —, oferece um pilar metodológica rerum novarum, conectando os fundamentos situacionais da experiência à transformação contínua da organização. Contudo, reconheço que a observação empírica do comportamento do utilizador exige instrumentos de análise aptos a captar as nuances da ação no seu devir.

Neste contexto, a teoria dos quadros de Erving Goffman revela-se um arcabouço interpretativo particularmente fecundo. Goffman concebe a vida social como uma tessitura de quadros (frames) que organizam a percepção e a ação. As situações vividas pelos utilizadores — desde o início de uma compra até à interação com jogos ou sistemas — não se esgotam nas suas descrições objetivas: são moldadas por processos de ancoragem, modulações de tons, ritmos de ação, laminações de experiências simultâneas e maquinações que fabricam a aparência de domínio ou naturalidade.

Ao integrar estas categorias goffmanianas às particularitas loquendi de UX Research, transito da simples descrição do que acontece para a compreensão do como acontece e com que sentido se releva. Esta abordagem fenomenológico-interpretativa permite esmiuçar práticas tácitas, ajustes improvisados (ginga) e encenações que marcam a interação do utilizador com produtos e serviços.

Novissima verba, para cada uma das oito estádios do meu planeamento, propus um checklist específico, orientado pelos conceitos de Erving Goffman (1974). Estas remansam fundamentais operam como guias para a análise etnográfica da experiência, ampliando a minha capacidade de captar tanto as estruturas de relevância que sustentam a ação como as microdinâmicas que a atravessam.

Exprimo sob relatório, o checklist do Diário da Experiência, que visa promulgar questões de usabilidade no inquérito de uma experiência a partir da óptica do dispositivo midiático.

Checklist do Diário de Experiência

  • I. Cenários (O quê?) — Quadros e Ancoragens
  • • Quais quadros (frames) estruturam a experiência?
  • • Quais ancoragens (anchorages) reforçam o sentido dos quadros?
  • • Há rupturas ou ambiguidades perceptíveis nos quadros
  • • Quais objetos ou interações confirmam a orientação do usuário?

  • II. Objetivos (Por quê?) — Tons e Keyings
  • • Que tons (key/keying) predominam nas ações?
  • • Há mudanças súbitas de keying? Em que momentos?
  • • Os objetivos percebidos se alinham ao tom vivido?
  • • Como o tom afeta a priorização de objetivos?

  • III. Alcance (Quanto?) — Ritmos de Ação
  • • Qual o ritmo dominante das interações (fluidez, hesitação, aceleração)?
  • • Há ciclos ou padrões rítmicos recorrentes?
  • • Que funcionalidades alteram significativamente o ritmo?
  • • O ritmo influencia a percepção de sucesso?

  • IV. Consciência (Quem?) — Laminações e Papéis
  • • Que papéis sociais os usuários assumem?
  • • Existem laminações (ações simultâneas) na experiência?
  • • Como os usuários interpretam a sobreposição de camadas?
  • • Há colapsos ou transições abruptas entre laminações?

  • V. Tática (Qual?) — Preparação e Ginga
  • • Há preparação consciente antes de ações decisivas?
  • • A improvisação (ginga) é visível diante de obstáculos?
  • • Que estratégias alternativas emergem espontaneamente?
  • • A preparação é ritualizada ou intuitiva?

  • VI. Execução (Quando?) — Ato Performático e Ritmo
  • • A execução das ações é ritualizada ou espontânea?
  • • Existem variações claras de ritmo na execução?
  • • Quais eventos provocam mudanças de fluxo?
  • • O ritmo vivido diverge do ritmo projetado?

  • VII. Aprendizagem (Então?) — Maquinações e Simulações
  • • Os usuários simulam domínio para ocultar dúvidas?
  • • Existem “fabricações” ou disfarces nas ações?
  • • Como ocorre o aprendizado por imitação ou gambiarra?
  • • A prática social molda o aprendizado informal?

  • VIII. Interiorizar (Onde?) — Quadros Reforçados e Melhoria
  • • Quais quadros são internalizados como naturais?
  • • Há sinais de automatização na experiência?
  • • Que ancoragens tornam-se parte da prática habitual?
  • • A experiência mostra ciclos de retroalimentação contínua?

Kochav Nobre
Auditor de pesquisa na Ernst & Young
Kochav Nobre é auditor em pesquisa na Ernst & Young (EY). Professor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisador visitante do Zentrum für Medien- Kommunikations- und Informationsforschung (ZeMKI) da Universidade de Bremen na Alemanha (2022) e Max Kade German-American Center da Universidade de Kansas (2018). Graduado em Publicidade pela Escola Superior de Propaganda em Marketing, mestre em Sociologia e doutor em Estudos da Mídia.Possui mais de dez anos de experiência em pesquisa e oito anos em docência. Inventor do software Qualichat, desenvolvido em seu pós-doutoramento na UNICAMP, entre 2020 e 2022. Fundador do Ernest Manheim Laboratório de Opinião Pública.