IA da Kraft Heinz

Por Redação

13/10/2025 17h33

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Em breve celebrarei trinta e nove anos, e muito ketchup já escorreu nesta vida de onze anos de docência. O mundo vivido, afinal, é também solo cultivável: tecido de gestos, ritmos e relevâncias que se adensam no tempo. Quando as novas tecnologias se insinuam nesse espaço, prometendo traduzir em código o que antes era intuição e tato, o que está em jogo não é apenas a eficiência do plantio, mas a própria cognição incorporada no viver. A agricultura digital, com seus sensores e algoritmos, não substitui a percepção: esta a reinscreve noutro plano de relevância, onde o dado tenta capturar o vivido e o vivido resiste em escapar pela fenda do automatismo.

Eu retorno a Pittsburgh, a terra onde morei há treze anos e aprendi a difícil pronúncia da palavra Heinz. À época, a gigante do ketchup ainda não fincara raízes no Brasil nem celebrara a fusão com a Kraft. Voltar aos Estados Unidos no outono é, para mim, rito de renovação: as folhas descem em silêncio e limpam a memória, deixando o solo pronto para o novo ciclo.

Hoje, ironicamente, é o Brasil que encarna o papel de vanguarda na transformação digital da própria Kraft Heinz. A empresa elegeu o país como laboratório global para empregar inteligência artificial e aprendizado de máquina no cultivo de tomates, milho e pepino. Conforme noticiou o AgFeed (2025), o projeto abrange sete mil hectares e congrega setenta produtores rurais. A promessa é de eficiência: uso racional de insumos, sensores que fiscalizam irrigação, antecipam pragas e aferem produtividade em tempo real.

O discurso soa persuasivo, menos desperdício, mais sustentabilidade. O gesto, contudo, é simbólico. A terra, outrora medida pelo corpo e pelo ritmo das nuvens, submete-se agora à mensuração algorítmica. O campo converte-se em rede sensorial, e o agricultor, em intérprete de dados. A revista Exame (2025) remeteu que o Brasil será “o novo motor global da Kraft Heinz”. Há nisso certa justiça histórica: um país antes visto como mero fornecedor de matéria-prima passa a exportar inteligência agrícola.

A inversão é silenciosa sem nenhum embargo. Quando o aprendizado de máquina se infiltra no solo, não é apenas a colheita que muda, altera-se o próprio sentido de plantar. O algoritmo pretende aprender o compasso do agricultor, mas impõe o seu: o compasso do dado. Eis o dilema. Que sucede quando o saber do corpo, o olhar que antecipa a chuva, o toque que lê o solo, precisa ajustar-se a um painel de indicadores?

O Portal do Agronegócio (2024) informa que o programa da Kraft Heinz elevou em 25% a produtividade e obteve certificação pelo Farm Sustainability Assessment. São números relevantes e talvez fidedignos. Todavia, provêm da própria empresa, sem aferição independente. A tecnologia, nesse quadro, já não é mero instrumento: torna-se gramática. O campo passa a exprimir-se na língua dos sensores, temperatura, umidade, textura, vento, e toda tradução, como se sabe, sacrifica algo do original.

O dado é exato, mas não sente. Mede o que está, ignora o que se insinua. O controle, tão decantado, é paradoxal: quanto mais se busca equilíbrio ecológico, mais se depende de sistemas que o vilipendiam. O algoritmo promete ordem, mas o que germina ainda é o acaso, de fato, essa inteligência anterior a qualquer código.

Talvez, afinal, a verdadeira transformação digital da agricultura brasileira não resida em automatizar a terra, mas em reconhecer que o dado certo continua a brotar do chão, não do servidor. Enquanto houver alguém que ainda ergue os olhos ao céu antes de colher, a agricultura permanecerá sendo o que sempre foi: uma conversa silenciosa entre a terra e quem a escuta.

No fim, talvez Schutz me lembrasse que toda tecnologia, por mais sofisticada, continua dependente do gesto humano que a torna significativa. O algoritmo não compreende o mundo vivido; apenas o recorta segundo relevâncias programadas. O agricultor, ao contrário, ainda pensa com o corpo, decide com o tempo do vento, não com o tempo do dado. E é nessa defasagem, nessa fricção entre a experiência e o modelo, que reside o sentido. A fenomenologia não rejeita a técnica: apenas nos recorda que o mundo não se revela por inteiro em medições. Há sempre um excedente de vida, o mesmo que faz o tomate amadurecer no seu ritmo, indiferente à precisão do sensor.

E talvez por isso, ao estrear em direção ao Silverman Phenomenology Center, minha primeira visita depois de tantos anos, sinto que a pesquisa retorna ao seu chão de origem: entre máquinas e colheitas, entre dados e gestos, o que persiste é o esforço humano de compreender o mundo sem o reduzir àquilo que pode ser calculado.

Kochav Koren
Professor adjunto e pesquisador do PhD de Retórica na Duquesne University
Kochav Koren é professor adjunto e pesquisador do PhD de Retórica na Duquesne University, professor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais, pesquisador visitante do Zentrum für Medien- Kommunikations- und Informationsforschung (ZeMKI) da Universidade de Bremen na Alemanha (2022) e Max Kade German-American Center da Universidade de Kansas (2018). Foi auditor em pesquisa na Ernst & Young (EY). Graduado em Publicidade pela Escola Superior de Propaganda em Marketing, mestre em Sociologia e doutor em Estudos da Mídia. Possui mais de dez anos de experiência em pesquisa e oito anos em docência. Inventor do software Qualichat, desenvolvido em seu pós-doutoramento na UNICAMP, entre 2020 e 2022. Fundador do Ernest Manheim Laboratório de Opinião Pública.