O Estar no Jogo do Uso

Por Kochav Koren

12/09/2022 09h10

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No intento de decodificar o branding do Brasil, Ana Couto divulgou, dias antes dos festejos de Independência do Brasil, o estudo Brasil branding: o valor que o País gera. O relatório diagnosticou polarização entre “o Brasil que entristece” e “a brasilidade que deixa feliz”. A plausível iniciativa me fez refletir sobre dois aspectos que entornam UX: o corrente fortalecimento da confluência qualiquantitativa e a primordialidade para haver novas categorizações qualitativas que enquadrem a pessoa humana. Atenho-me à última.

 

“Festeiro”, “alegre”, “criativo”, ‘forte” e “trabalhador”, respectivamente em proporção decrescente percentual, predominaram os códigos positivos dos “atributos da personalidade” no estudo. Cinco comunidades on-line, 600 mil tweets e 2.500 respondentes via survey foram os corpora analíticos do que se intitulou Valometry®, método e meio exclusivos da firma carioca. As insígnias “decodificadas” foram cruzadas por perfis sociodemográficos, dando o tom das trilhas que fornecedores de branding percorrem ao encontro de uma cientificização publicitária. 

 

Encontro-me na primeira fileira para aplaudir arrojos desta natureza. Figuro, desde 2012, como pesquisador qualiquantitativo. Defendo o argumento de que a “triangulação” da pesquisa em UX só será popularizada quando o diálogo transcendental entre especialistas quantitativos e qualitativos for naturalizado. O que li, sem embargo, fortaleceu o entendimento que tenho sobre as limitações da fixação cândida sobre personas e arquétipos. 

 

Na anos de 2000, acompanhei, na qualidade de empregado da extinta marca Ampla, os resultados dos trabalhos de reposicionamento da antiga estatal de energia elétrica CEMIG, feito pelo estúdio. Uma década depois, testemunhei a ampliação de Ana Couto pelo Nordeste. Em inúmeras aulas, os casos de Indaiá, Beach Park e Betânia estampavam minhas exemplificações na disciplina Branding, do curso de Publicidade. Estimo os ofícios de Ana Couto e também sei que o relatório enraizará o ramerrão metodológico, pioneiro, com mérito, do branding brasileiro. Fui o primeiro, à la “polarização”, sem embargo, a criticar o fascínio por “arquétipo de marca”, sequaz do “atributo de personalidade”.

 

Parecia-me, já à época, que a instrumentalização das pesquisas se dava em caráter validante do estabelecido: o ato criativo antecessor no entorno do desenho de marca. Obrigava-se, ao meu sentir, justificar a escolha abstrata pela beleza gráfica dos números e da poética de categorias. Os arquétipos “encaixotavam”, assim traduzia, o metamórfico câmbio do posicionamento das marcas. Algo, semelhante, atesto hoje, ao presenciar apresentações de insights de pesquisa UX. Alguns pesquisadores, acaso pela falta de oportunidade em firmar um rigor científico em instâncias acadêmicas, justificam no frame da pesquisa o estalo precursor. Validam a nascente premissa ainda em sua gestação. Coletam a cinca da escuta, conforme relatado em minha contribuição anterior em Nosso UX. Estampam números e categorias para o argumento validador ou descoberto. Personas é o maior exemplo.

 

Há de se compreender e criticar o fazer cotidiano. Evolui-se ao procedê-lo. A pessoa pesquisadora ou cientista da experiência, parece-me, muito logrará, ao compreender a gleba das teorias incutidas em práticas e métodos de ofício. Personas e arquétipos se abraçam ao, pretensiosamente, enquadrar a pessoa-Ser em usuários e consumidores. Comungam raízes na História da Psicologia. Polarizam-se, todavia, mais uma vez, pelas disputas de campo entre a Psicologia Experimental e a Psicologia Analítica, respectivamente. Não me atrevo a detalhar o duelo nesta crônica. Psicologia não é meu domínio. A Sociologia e a Mídia que me formaram já se confrontam entre minha aproximação estruturalista e fenomenológica.

 

Human-computer interaction (HCI) é o terreno patrono do UX – solo teórico nascido com suporte nas práticas industriais cingidas na academia. Computação e Psicologia Cognitiva, mais especificamente. Abro parêntese para evidenciar que esta área do conhecimento se alicerçou nos trabalhos experimentais de Dr. Stuart Card, na Xerox, ainda na seara das Exatas. Card foi graduado em Física em 1966 e obteve o título de Doutor em Psicologia pela Carnegie Mellon University (CMU), anos depois. Foi influenciado pela onda dos anos de 1960 que fizera tangível o rompimento da Psicologia Cognitiva com seu berço: o behaviorismo.

 

De fato, de 1920 a 1950, isso já havia sido iniciado, especialmente, com amparo no trabalho dos ingleses e psicólogos experimentais Donald Broadbent (Perception ad Communication, 1958) e Frederic Bartlett (Remembering: A Study in Experimental and Social Psychology, 1932). Dr. Donald Norman unificou o jogo nos anos de 1970.

 

No Brasil, o fazimento UX está longe de ter sido marcado pelo HCI.  Na corrente década guinada da empregabilidade de cientistas sociais na tecnologia aplicada, a disputa de campo se firmará vinculada às vivências teóricas que fundam o artesanato analítico destes profissionais. Há de se contribuir em nossa latinidade com o HCI, alforriar também o grito de independência.

 

Sem ignorar o ganho da abstração metodológica das correntes que consagram as preestabelecidas práticas, o feito dos cientistas da experiência é “comprar o jogo”, como se diz na capoeira, isto é, anunciar teorias que fundam suas práticas cotidianas, olhar para História da Ciência, sem perder o traquejo da materialidade da pesquisa UX nos curtos prazos de sprints. Respondo a isso, descortinando a metodologia de “figuras”, tomada com esteio na minha especialização em Erving Goffman.

 

Arquétipos, personas e figuras são irmãos, melhor, primos da família Categorização Qualitativa da Pessoa Humana. Na indústria, o primeiro diz sobre o “consumo”, o segundo apoia a “cognição” e o terceiro replica o “interacionismo simbólico”. Categorias são modalidades de organizar achados, apontam amplexo teórico e práxis. No UX, não são dialéticas, mas frames de encontrar sentidos à demanda pelo saber mais sobre o outro e oferecer a estas suas “reais necessidades”. Portanto, comungam com as diferenças que as sustentam. 

 

No âmbito da indústria, arquétipos diz sobre a simbolização do “ser” na qualidade de consumidor, válido no Marketing. Aboiam de caixas. Personas, do “usar” como interagir, útil ao Design Ágil. Afloram de canastras. Figuras complementa o tentame de categorização da complexidade humana, produzindo sentido sobre a interação midiatizada. Enquadram o movimento interativo como um “estar” representacional. Examinam o frame emergido da pesquisa desencaixotada.

 

Curtamente simplifico. Deve-se ampliar a categoria do consumidor “feliz” ou “malandro” que faz um PIX; ou da “dor” da falta de um feature de entretenimento no uso de uma “jovem, branca, de classe média, moradora de Pinheiros e que ama música”, quando interage no APP de seu banco. Alargar para uma compreensão que uma “constelação de atores” figuram ao estar no jogo de uso de uma aplicação. São delimitados por ancoragens e puxados à roda do clique por tons, em seu “estar” no acontecimento, vigor natural. Traduzem “acontecimentos” em laminações e maquinações da forma do movimento simbólico interacional. O cientista da experiência deve atentar para o “acontecimento” do jogo interativo e as figurações que agrupam padrões de interações.  Isto sem a pretensão de definir o Ser.

 

Avento a ideia de que se acresçam ao “uso” do “usuário” a representação, a significação, os fragmentos do “dar mostras” e o engendrar do movimento do “estar” no uso. Proponho considerar “figuras” nos estádios de “discovery” ou “evaluation” do fazer UX. O “como fazer” estará publicado em minhas próximas intervenções de Nosso UX.

 

 

Fernando Nobre

Cientista da mídia e etnógrafo de produtos digitais. Pesquisador visitante do Zentrum für Medien- Kommunikations- und Informationsforschung (ZeMKI) da Universidade de Bremen na Alemanha (2022) e Max Kade German-American Center da Universidade de Kansas (2018). Graduado em Publicidade pela Escola Superior de Propaganda em Marketing, mestre em Sociologia e doutor em Estudos da Mídia. Fundador do Ernest Manheim Laboratório de Opinião Pública

fernando@ernestmanheim.com.br | @noblecavalcante

Kochav Nobre
Auditor de pesquisa na Ernest & Young
Kochav Nobre é auditor em pesquisa na Ernst & Young (EY). Professor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisador visitante do Zentrum für Medien- Kommunikations- und Informationsforschung (ZeMKI) da Universidade de Bremen na Alemanha (2022) e Max Kade German-American Center da Universidade de Kansas (2018). Graduado em Publicidade pela Escola Superior de Propaganda em Marketing, mestre em Sociologia e doutor em Estudos da Mídia.Possui mais de dez anos de experiência em pesquisa e oito anos em docência. Inventor do software Qualichat, desenvolvido em seu pós-doutoramento na UNICAMP, entre 2020 e 2022. Fundador do Ernest Manheim Laboratório de Opinião Pública.