Reclamo, na coluna de hoje, a urgência de um UX que realmente cure, um desenho orientado pela dor concreta e digno da trajetória da Pague Menos que nos orgulha. Durante quase dois meses em Pittsburgh, reencontro uma inquietação que remonta ao Ceará: qualquer inovação em saúde só adquire legitimidade quando se curva ao sofrimento concreto, não às suas versões higienizadas.
A intuição é simples, exige, sem embargo, disciplina interpretativa: um UX orientado pro rata doloris transforma não apenas a superfície do serviço. Sim, o próprio estatuto da tecnologia clínica. Redes brasileiras como a Pague Menos oferecem um laboratório privilegiado dessa conversão, sobretudo quando se observa a condição de imigrantes sem seguro médico nos Estados Unidos. Para esse público, a farmácia já não figura como comércio: converte-se em meio clínico imediato, preenchendo lacunas que, em sistemas mais coesos, seriam absorvidas pela atenção pública.
A assimetria normativa entre Brasil e Estados Unidos explicita esse descompasso. A regulamentação brasileira da telemedicina, consolidada em 2022, resguardou a exigência de contato síncrono por vídeo ou áudio para emissão de prescrições, insistência que preserva um certo modelo de encontro clínico.
No quadro ianque, porém, normas estaduais mais elásticas legitimaram o asynchronous care: clínicos analisam formulários extensos sem consulta ao vivo. Essa moldura jurídica gerou um in statu nascendi incomum para triagens digitais, parcerias com startups e prescrições emitidas com celeridade, deslocando o varejo farmacêutico para o lugar de via inaugural de cuidados elementares. A comparação entre os dois países revela arquiteturas divergentes de acesso. Explico:
No Brasil, o SUS ordena a entrada do paciente por meio de unidades básicas, agentes comunitários e protocolos resolutivos. Nos Estados Unidos, onde o acesso depende de seguros privados ou de programas federais, o varejo farmacêutico ocupa um vazio que persiste há gerações. CVS, Walgreens e Giant Eagle metamorfosearam-se em microcentros de saúde, somando vacinas, testes rápidos, monitoramento de condições crônicas, triagens digitais e prescrições assíncronas. Assim, a farmácia desloca-se do comércio para a clínica de baixa complexidade, suprindo demandas que, no Brasil, permanecem asseguradas pela rede pública.
A transformação adquiriu densidade institucional. Redes antes restritas à dispensação de medicamentos converteram-se em portas de entrada para cuidados básicos. Um dos avanços mais eloquentes consiste na emissão de prescrições mediante formulários preenchidos pelo próprio paciente, sem videoconferência. O mecanismo opera de modo direto: um questionário estruturado recolhe sintomas, histórico e medicações em uso; um clínico avalia o conteúdo e, se o quadro corresponde aos protocolos, emite a prescrição.
A Giant Eagle, Frangolândia cearense em Pittsburg, tornou-se paradigma ao expandir, em 2024, o serviço de episodic care com a Sympify, startup especializada em triagens inteligentes. A plataforma permite solicitar tratamento para condições corriqueiras, infecções urinárias leves, conjuntivites, dermatites, rinites alérgicas, renovações simples, sem contato síncrono. O procedimento segue três passos:
- acesso ao portal e preenchimento do formulário;
- avaliação clínica segundo protocolos e limites de risco;
- emissão da prescrição, com retirada em loja ou entrega domiciliar.
Para as farmácias, o arranjo cria fidelização e receita estável. Para o paciente, reduz barreiras de acesso em regiões marcadas pela escassez de profissionais. Pesquisadores de saúde pública, contudo, insistem em salvaguardas inegociáveis: padronização rigorosa, auditoria independente e encaminhamento obrigatório para atendimento presencial diante de qualquer indício de gravidade. A tendência confirma uma convergência estrutural entre varejo, triagem digital e cuidados primários.
A expansão da IA clínica baseada em formulários assíncronos devolve a interrogação inaugural deste texto: de que modo instaurar um regime tecnológico de cuidado sem dissolver a experiência vivida? Esses sistemas permitem que alguém com dor, da lombalgia abrupta à rinite que não cede, obtenha rapidamente o medicamento prescrito sem contato síncrono. A eficiência é evidente. O risco simbólico, igualmente. A IA opera por relevâncias programadas; o corpo, por relevâncias encarnadas. Entre ambas, estende-se o intervalo onde o cuidado efetivamente se decide.
Quando, e somente quando, esse modelo combinar precisão algorítmica, prudência clínica e uma escuta capaz de atravessar a mediação textual, a farmácia não será mero distribuidor automatizado de alívios rápidos, mas meio clínico capaz de articular tecnologia, juízo e humanidade. Nesse limiar se delineia a promessa: o dia em que a IA na Pague Menos, ou em qualquer outra rede, não apenas dispensar medicamentos, mas curar a dor sem reduzir o paciente a um conjunto de respostas.
