Smart Design na Embraer

Por Redação

04/08/2025 15h18

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Parto do estudo técnico assinado por Ferreira, Araújo e Teixeira (2023), intitulado Smart Cabin: Defining Design Requirements for Regional Aircraft Cabins, publicado nos anais do 20º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Inovação Aeronáutica e Espacial (PIBRAE). O artigo situa a Embraer no mesmo tabuleiro simbólico que Airbus e Boeing no campo dos OEMs (Original Equipment Manufacturers), delineando metas operacionais como o monitoramento em tempo real para reduzir o tempo em solo e ampliar receitas por meio de serviços de bordo conectados, com ênfase em sustentabilidade e descarte responsável ao longo do ciclo de vida do produto.

A abordagem metodológica centra-se em quem habita a cabine (passageiros, comissários, pilotos), excluindo propositadamente o olhar da autoridade certificadora e da engenharia estrutural. Com base nessa moldura, proponho aqui aplicar meu Diário de Experiência, ancorado nos quadros interpretativos de Erving Goffman e no planejamento estratégico em oito estádios ao excertos em que a Embraer é citada, seja como fabricante, como casa institucional de uma das autoras, ou como mentora do PEE – Programa de Especialização em Engenharia da Embraer. Meu gesto é simples: converter menções pontuais em cenas vividas de uso e decisão.

Smartcabins apenas ganham consistência conceitual quando deslocamos o sentido de “experiência do usuário” de seu uso superficial, centrado no entretenimento, para o plano arquitetônico de um ecossistema. Não se concebe ao decorar a cabine com penduricalhos digitais, mas de tratá-la como uma célula simbiótica: espaço que fala, antecipa, registra e aprende com seus ocupantes e com os sistemas que a envolvem, da linha de montagem ao pátio de manobra. A tese é simples: se cidades, casas e automóveis já operam como redes de dispositivos, a cabine, sobretudo na aviação regional, só manterá sua competitividade quando passar a operar como nó sensível de um sistema sociotécnico mais vasto, onde conforto, serviço e manutenção são dimensões de um mesmo desenho informacional.

Esse é o horizonte delineado pelo conceito de smart cabin, ancorado na maturação de infraestruturas como IoT e 5G, e assumido por OEMs como Embraer, Airbus e Boeing como vetor tanto de diferenciação simbólica quanto de eficiência operacional.

A entrada se dá pela gramática do vínculo humano: comunicação. Uma cabine inteligente deve reduzir atritos onde eles ainda são regra, o diálogo entre passageiros, comissários e cockpit. Ao exigir um sistema de troca de informações passageiro–comissário e um canal acessível ao longo de toda a fuselagem, o conjunto de requisitos converte comunicação em usabilidade situada: menos deslocamentos, menos ruído, mais resposta no tempo certo. Resultado: menor carga cognitiva nas fases críticas. Essa é a acepção dura de UX: reconfigurar tarefas, não apenas interfaces.

A segunda marca axial é a personalização conectada. Sim, a cabine deve prover carregamento de dispositivos e conexão para qualquer PED, dispositivo eletrônico portátil. Mas não para replicar o “mais do mesmo” do streaming doméstico. A customização de conteúdos (apps, idioma, perfil) e a imersão regulável no sistema de entretenimento reposicionam o sistema de entretenimento e conectividade a bordo (IFEC) como uma plataforma central de orquestração da experiência digital em voo, coordenando preferências, interações e ritmos informacionais de cada passageiro. Cada passageiro ajusta seu próprio “campo de presença” sem comprometer a coerência do serviço a bordo. Em voos curtos, esse ajuste evita o placebo de telas inertes; em médios, sustenta continuidade de trabalho ou repouso.

Esse eixo informacional transborda o assento. Um projeto de UX responsável é, por definição, um projeto de fluxos. Isso inclui rastreamento de bagagens com comunicação ativa ao passageiro; organização de carga que acelera o desembarque; e ferramentas que, ainda no ar, habilitam o pré-posicionamento de tarefas estratégicas do giro (TAT), reduzindo incertezas no tempo em solo. É aqui que “experiência” se traduz em pontualidade, não em slogans vazios.

Existe, ainda, uma ética do cuidado incrustada no ambiente físico. O requisito de “saúde ambiental” (ar, umidade, temperatura, pressão, iluminação, ruído, contaminantes) reconhece que conforto não é um gesto isolado, mas um acúmulo. Os sintomas do pós-voo mitigam-se por engenharia de base, não por lenitivos retóricos. O controle autônomo da temperatura entre cabine e cockpit reafirma esse princípio: calibrar contextos distintos de trabalho e permanência. Em termos de UX, trata-se de ajustar parâmetros que modulam percepção, humor e desempenho, sem o cacoete do “mimo episódico”.

A acessibilidade sai do gueto do “cumprimento normativo” e assume o centro do projeto. Ao incluir exigências de acesso físico, sensorial e cognitivo desde o desenho, a cabine se torna usável por mais pessoas em mais contextos. Por tabela, melhora a experiência de todos e reduz o tempo ocioso em atendimentos. UX universal é aqui aplicada ao hard e ao soft da cabine.

Nada disso se sustenta sem UX de serviço voltada aos que operam a bordo. Instrumentos que auxiliam na preparação e execução do serviço de bordo e nas checagens de segurança reduzem ciclos, fadiga e margem de erro. Liberam, sobretudo, atenção para o que não pode falhar: acolhimento e segurança. UX aqui é ergonomia de processo: mover menos, decidir mais rápido, errar menos.

Do lado oculto ao passageiro, pontes de dados com o solo deslocam a manutenção da lógica reativa para a preditiva. A cabine que comunica o status de seus sistemas, integra documentação pré/pós-voo e fala a mesma língua que os sistemas de bordo reduz o diagnóstico, evita retrabalho e, no limite, devolve minutos à malha. Minutos percebidos como confiabilidade. O ganho de UX emerge justamente da invisibilidade: menos panes detectadas tarde demais, menos trocas forçadas de aeronave, menos anúncios constrangidos de atraso.

Dois aspectos subestimados completam o feixe: limpeza e espaço. Ferramentas que facilitam a higienização durante e entre voos não são firula estética, mas manifestação pública de cuidado. E a percepção de amplitude, mesmo em dimensões físicas dadas, regula o conforto sensorial. UX é também semiótica ambiental.

Para sintetizar: os requisitos se agrupam em classes que tornam visível o escopo integral da experiência, da limpeza à comunicação, do entretenimento à acessibilidade, da conectividade ao ambiente, da segurança ao serviço de bordo, do suporte ao conforto da cabine. Tal taxonomia revela que UX, na smart cabin, não é ornamento de marketing, mas programa de integração técnica e simbólica.

No plano metodológico, o itinerário é igualmente claro: mapear o ecossistema de partes interessadas, priorizando os que efetivamente vivem a cabine (passageiros, comissários, pilotos), e avançar com figuras de interação e jornadas para converter queixas dispersas em requisitos estruturados. Essa inversão, cabin-centered, impede que decisões se encalacrem nas restrições organizacionais e devolve à experiência real o papel de núcleo do projeto. O “ator-usuário” deixa de ser figura retórica e reassume seu estatuto de fonte.

Convém lembrar por que tudo isso importa agora. A promessa da smart cabin não é só “encantar o passageiro”. É encurtar o tempo em solo por monitoramento em tempo real, abrir novas receitas em serviços e tornar a operação mais sustentável. Três frentes que se reforçam mutuamente quando a cabine é tratada como sistema informacional integrado.

Essa é a economia política da UX na aviação: experiências melhores porque processos são melhores; processos melhores porque os dados circulam na cadência do voo.

Entro, então, pela cena do estrangeiro em projeto: o primeiro encontro com a expressão smart cabin dita sem ironia num corredor da Embraer, não como promessa de brilho, mas como ajuste fino de convivência. O frame que me acolhe é o de uma fabricante que não mira a cabine como adereço, mas como dramaturgia de gestos mínimos que sustentam confiança. Ancoragens brotam nos detalhes de filiação e de chão de fábrica que o texto apenas insinua, e eu, leitor-praticante, traduzo isso como convite a olhar o assento, a luz e o ruído não como objetos, mas como ritmos de presença. A meta oficial,  reduzir minutos de pátio, ganhar previsibilidade, sustentar valor, ressoa como keying que baixa a voz do espetáculo e acende a do cuidado: “limpeza é sinal”, “silêncio é serviço”, “tempo é afeto”.

O alcance, aprendo, não se mede em fileiras, mas na cadência do ir-e-vir entre galley e corredor, nos tropeços que a planilha não prevê; e se a engenharia em offstage parece ausente, logo se revela laminação essencial, o que o passageiro toca, a norma molda, e o gesto só acontece porque alguém incluiu desmontabilidade e descarte na primeira linha do desenho.

É nesse ponto que o PEE emerge, citado nos agradecimentos do artigo não apenas como apoio acadêmico, mas como plataforma formativa e rito de passagem institucional. Mais do que um curso de pós-graduação lato sensu voltado à capacitação de jovens engenheiros, o PEE constitui ambiente de transdução entre o offstage da engenharia e o palco vivo da cabine em uso. Ali, o projeto deixa de ser abstração técnica e passa a encarnar-se no gesto: projetar, nesse escopo, não é compor linhas em CAD, mas traduzir hesitação em ajuste e ruído em requisito. 

O ethos que pulsa nas oficinas e nos módulos imersivos do PEE desloca o centro de gravidade da invenção para a escuta. É ali que se aprende a modular a voz do projeto para que ela fale no sotaque do voo: observar o comissário dobrar o joelho, cronometrar o acesso à galley, ouvir a pausa do piloto antes do briefing.

Demais disso, quando o artigo menciona requisitos de acessibilidade, sustentabilidade ou conectividade, leio-os como marcas de um aprendizado anterior, aquele que se dá no compasso entre teste e desmontagem, entre briefing e falha registrada, entre o caderno de bordo e o manual de procedimentos. O PEE, nesse sentido, forma engenheiros não apenas competentes, mas afinados: sensíveis à semiótica do gesto, ao tempo do corpo e à liturgia do serviço bem-feito. Não por acaso, os protótipos de uma smart cabin bem-sucedida raramente nascem de brainstorm, mas de quem se inclinou para limpar, ajustar ou ouvir.

Ao fim, o que se interioriza não é uma coleção de funcionalidades, mas a disposição de escutar. A cabine fala baixo, e é nesse sotaque, Embraer entre gigantes, mas com assinatura própria, que a experiência se faz inteligível ao corpo que voa.

Kochav Koren
Professor adjunto e pesquisador do PhD de Retórica na Duquesne University
Kochav Koren é professor adjunto e pesquisador do PhD de Retórica na Duquesne University, professor designado na Universidade do Estado de Minas Gerais, pesquisador visitante do Zentrum für Medien- Kommunikations- und Informationsforschung (ZeMKI) da Universidade de Bremen na Alemanha (2022) e Max Kade German-American Center da Universidade de Kansas (2018). Foi auditor em pesquisa na Ernst & Young (EY). Graduado em Publicidade pela Escola Superior de Propaganda em Marketing, mestre em Sociologia e doutor em Estudos da Mídia. Possui mais de dez anos de experiência em pesquisa e oito anos em docência. Inventor do software Qualichat, desenvolvido em seu pós-doutoramento na UNICAMP, entre 2020 e 2022. Fundador do Ernest Manheim Laboratório de Opinião Pública.