Sim, ainda acontece. Mesmo com uma lei específica em vigor há mais de quinze anos, ainda existem órgãos públicos que tentam contratar serviços de publicidade por meio de pregão eletrônico ou presencial. A justificativa, quase sempre, é a mesma: agilidade, economia, simplicidade. Mas há um problema — um problema legal, técnico e institucional: isso não pode.
A Lei nº 12.232/2010, que rege as contratações de agências de publicidade pela Administração Pública, não admite o uso do pregão para esse tipo de serviço. E não é por preciosismo jurídico. É porque publicidade não é commodity. É estratégia, é linguagem, é inteligência aplicada à comunicação.
Neste artigo, vamos entender por que a licitação de publicidade deve ser feita exclusivamente por concorrência, por que o critério de julgamento deve obrigatoriamente envolver técnica — e por que isso importa tanto para o interesse público. É hora de desmistificar a regra e valorizar o que ela protege: a qualidade da mensagem que o Estado entrega à sociedade.
A Lei nº 12.232/2010 e seu caráter especial
Como já falamos diversas aqui na nossa coluna, a contratação de serviços de publicidade pelo poder público segue uma trilha própria. Embora as regras gerais das licitações estejam hoje reunidas na Lei nº 14.133/2021, o setor publicitário continua regido por uma norma específica: a Lei nº 12.232/2010. E isso faz toda a diferença.
A 12.232 não é um apêndice da nova lei de licitações — é um microssistema jurídico completo, autônomo e, sobretudo, prevalente. Ou seja: sempre que se tratar da contratação de serviços de publicidade institucional por órgãos públicos, é a 12.232 que se aplica, e não a 14.133.
E o que essa lei exige?
Que a licitação siga um rito próprio, com fases técnicas, julgamento especializado, proposta apócrifa, presença de subcomissão técnica e critérios voltados à qualidade da solução criativa — tudo isso incompatível com o formato do pregão.
Essa regra existe porque o objeto contratado — a publicidade — não é um serviço comum. Ele envolve interpretação, criação, estratégia e planejamento. Não há catálogo, não há preço tabelado, não há padronização possível. Cada proposta é única, e precisa ser analisada por critérios que vão além da planilha de custos.
Por que o pregão não serve para publicidade
Há uma razão sólida e jurídica para que os serviços de publicidade não possam ser contratados por pregão: trata-se de um serviço intelectual, estratégico e não padronizável — e, portanto, incompatível com os pressupostos legais dessa modalidade.
O pregão, por definição legal (Lei nº 14.133/2021, art. 6º, XL), só pode ser utilizado para a contratação de bens e serviços comuns, ou seja, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos no edital, por meio de especificações usuais no mercado.
A publicidade governamental, por sua vez, está longe de se enquadrar nessa definição. Ela envolve o desenvolvimento de campanhas simuladas, estratégias de comunicação, soluções criativas e análises técnicas específicas para o contexto de cada órgão. Tudo isso torna sua avaliação técnica e subjetiva, exigindo julgamento especializado — como aliás exige a própria Lei nº 12.232/2010, ao prever subcomissão técnica, propostas apócrifas e critérios técnicos como condição para seleção da agência.
Ou seja: a própria estrutura procedimental prevista na Lei nº 12.232 não comporta o rito do pregão. A lógica do pregão — rápida, simplificada, baseada no menor preço ou em critérios puramente objetivos — colide com o microssistema da 12.232, que exige julgamento de conteúdo criativo e estratégico.
Logo, aplicar o pregão à publicidade, além de ilegal, por contrariar a própria lei de regência, é inadequado tecnicamente. É dizer,A contratação por concorrência é, nesse caso, a única via legal possível.
Julgamento técnico: única forma de garantir qualidade
Se o pregão é incompatível com a contratação de publicidade, é porque publicidade não se mede apenas por preço. Criatividade, adequação comunicacional, leitura institucional, solução estratégica — nada disso cabe em uma fórmula matemática. E é por isso que a Lei nº 12.232/2010 determina que o julgamento da proposta seja feito com base em critérios que envolvam a qualidade técnica da solução apresentada.
Essa exigência aparece de forma difusa, mas muito clara, ao longo da norma: a proposta deve conter uma campanha simulada, ser analisada por uma subcomissão técnica composta por especialistas, de forma apócrifa, com base em critérios técnicos previamente definidos.
É daí que decorre — de forma inequívoca — a regra: os únicos critérios de julgamento possíveis são “melhor técnica” ou “técnica e preço”. O critério “menor preço” simplesmente não é compatível com a estrutura da Lei nº 12.232/2010.
Isso é, aliás, o que expressamente dispõe o art. 5º da Lei 12.232/2010. Somente poderão ser utilizados como critérios de seleção nas licitações de publicidade a “melhor técnica” ou “técnica e preço”, o que torna incompatível com a modalidade do pregão, que só pode se utilizar do critério “menor preço”.
Na prática, isso significa que o conteúdo da proposta importa — e muito.
A agência precisa demonstrar capacidade de leitura institucional, coerência estratégica, domínio da linguagem pública e habilidade criativa para entregar soluções viáveis e eficazes.
Essa lógica protege o interesse público. Afinal, campanhas mal planejadas, mal executadas ou sem aderência à realidade do órgão custam caro, mesmo quando parecem baratas. Comunicação ineficaz é desperdício de verba, ruído institucional e, muitas vezes, porta aberta para judicializações.
Onde ainda se erra — e o que fazer quando isso acontece
Apesar de todo o arcabouço legal da Lei nº 12.232/2010 e da lógica que a sustenta, infelizmente ainda há órgãos que tentam licitar serviços de publicidade por meio pregão. Em alguns casos, por desconhecimento técnico da legislação específica. Em outros, por tentativa de simplificar o processo, contornando as exigências de julgamento técnico. Em todos os casos, trata-se de um equívoco jurídico que precisa ser corrigido, até mesmo porque trata-se de atitude ilegal.
Para as agências participantes, o ideal é agir preventivamente. Ao identificar um edital que aplica o pregão à publicidade institucional, cabe apresentar uma impugnação fundamentada, demonstrando a ilegalidade do procedimento e pedindo sua adequação. Se isso não surtir efeito, o caminho é o recurso administrativo para a instância superior ou mesmo o mandado de segurança, caso o processo avance em flagrante desrespeito à norma.
Mas essa não é uma responsabilidade só das agências. Associações representativas do setor, como a ABAP, a Fenapro, os sindicatos regionais e os conselhos profissionais, também têm papel fundamental na orientação técnica dos órgãos públicos, no acompanhamento de editais e na promoção de ações pedagógicas junto a gestores e comissões de licitação.
Além disso, os próprios órgãos de controle, como tribunais de contas e ministérios públicos, têm reconhecido o descabimento da adoção do pregão nesses casos, consolidando a compreensão de que a Lei nº 12.232/2010 exige a adoção da concorrência e critérios técnicos de julgamento.
Conclusão: a criatividade não se compra pelo menor preço
Quando o Estado decide contratar uma agência de publicidade, ele não está adquirindo uma mercadoria qualquer. Está buscando uma solução criativa, estratégica e tecnicamente orientada para comunicar políticas públicas, serviços institucionais e campanhas de interesse coletivo. É um serviço que exige critério — não apenas economia.
É por isso que a Lei nº 12.232/2010 estabelece um modelo licitatório próprio, baseado na concorrência e no julgamento técnico. Não se trata de burocracia nem de reserva de mercado, mas de uma escolha consciente do legislador: garantir que a comunicação pública tenha qualidade, efetividade e responsabilidade.
Tentar aplicar o pregão a esse tipo de contratação é, além de ilegal, um contrassenso. É como tentar escolher uma campanha nacional de conscientização com os mesmos critérios usados para comprar papel sulfite.
Quem compreende a lógica dessa legislação passa a ver com mais clareza o valor intangível da publicidade estatal — e entende que proteger a qualidade da contratação é proteger o interesse público.
E, assim, para concluir: para a contratação de publicidade, pregão não!
