Análise

De Hawkins para o mundo: a jornada de Stranger Things rumo ao topo da cultura pop na era do streaming

Por Lucas Abreu

27/11/2025 10h30

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Aos visitantes de Hawkins e do Mundo Invertido, subam nas suas bicicletas, pois o Nosso Meio vai te levar para uma viagem pelas histórias, estratégias e legado do maior fenômeno pop dos streamings

Hawkins, estado de Indiana, 1983.

Às 20h15 do dia 6 de novembro, o jovem Will Byers, de 11 anos, desapareceu ao retornar para casa, após uma partida de Dungeons & Dragons na casa de seu amigo e colega de turma, Mike Wheeler. Na manhã seguinte, a mãe de Will, Joyce Byers, procura a delegacia de Hawkins para reportar o seu desaparecimento.

No começo tarde, o xerife Jim Hopper investiga os arredores da casa dos Byers e encontra uma espingarda e rastros que indicam uma luta entre Will e uma criatura de mais de dois metros. No fim da tarde, Hopper reúne um grupo de buscas para localizar Will.

Paralelamente, os amigos do garoto desaparecido: Mike, Dustin Henderson e Lucas Sinclair saem em direção ao bosque a sua procura e se deparam com uma menina de cabeça raspada, roupas hospitalares e o número 011 tatuado na face interna do antebraço esquerdo.

A partir daí, uma série de “coisas estranhas” passam a ocorrer na cidade de Hawkins.

Quem lê o início dessa narrativa pode se surpreender ao descobrir que ela foi rejeitada por cerca de 15 a 20 emissoras de televisão antes de ser produzida pela Netflix. Segundo os Irmãos Duffer, criadores de “Stranger Things”, os executivos da época não gostavam da ideia de uma série de horror e ficção científica ser centrada em crianças. As contrapropostas sugeriam amenizar o horror ou então colocar Hopper como protagonista integral da narrativa, ideias rejeitadas pelos Duffer.

Após dez anos e quatro temporadas, a dupla de irmãos foi expandindo a narrativa de Hawkins e do Mundo Invertido para além das telas do streaming, oferecendo outros formatos de narrativas aos fãs e elevando Stranger Things a um fenômeno global. O resultado se concretiza em faturamentos milionários, resgate de tendências de décadas passadas e uma vitrine para marcas que desejam alcançar novos públicos. Por trás de tudo, uma estratégia que combina boca a boca digital, bom humor e investimentos milionários em experiências marcantes.

O universo de Stranger Things se tornou vasto na ficção e na realidade, mostrando camadas que podem dialogar não apenas com o passado da década de 1980, mas também com uma realidade atual, encabeçada pela nostalgia. E é a partir dessa estratégia que nós nos debruçaremos. Subam nas suas bicicletas e nos acompanhe nessa jornada.

Capítulo Um: O Nascimento de um Fenômeno

Como mencionado acima, os Irmãos Duffer encontraram dificuldades para emplacar “Stranger Things” nas principais emissoras de televisão norte-americanas. O motivo principal era a trama sombria de horror e ficção científica protagonizada por crianças, mas direcionada para o público adulto. A combinação era considerada um risco para os canais tradicionais tanto abertos quanto fechados.

Outro ponto de resistência era a estética, profundamente marcada pela cultura pop dos anos 1980. Em meados da década de 2010, o marketing de nostalgia não era tão poderoso como o de agora, o que fez os executivos das emissoras verem a ambientação retrô como algo de nicho, o que inviabilizava a produção do projeto. O tom cinematográfico da proposta também gerava inseguranças, já que o formato não se adequava aos padrões de gênero das produções da época.

Os empecilhos da TV tradicional, entretanto, foram enxergados como potencial pela Netflix, que buscava projetos que combinassem gêneros, permitissem maratonas e conversassem com públicos de diferentes idades. A plataforma de streaming, então, deu sinal verde e a primeira temporada de oito episódios chegou ao seu catálogo no dia 15 de julho de 2016.

Para divulgar a primeira temporada, a Netflix desenvolveu uma estratégia de marketing bastante atípica para grandes produções, apostando em engajamento digital, nostalgia e “buzz” orgânico nas redes sociais. Uma das ações mais memoráveis, foi um vídeo protagonizado pela apresentadora Xuxa Meneghel lendo cartinhas e utilizando bordões típicos do Xou da Xuxa, que posteriormente viraram memes nas redes sociais. Estratégia que também se repetiu na segunda temporada em um vídeo protagonizado pela atriz María Antonieta de Las Nieves, interpretando sua icônica personagem Chiquinha.

“O trabalho comunicacional da Netflix é muito poderoso para tentar transformar os seus produtos em meme, em virais e em materiais que possam ser distribuídos pelo grande público, sem parecer que eles vieram inicialmente de uma empresa com interesses financeiros. Ela talvez seja uma das melhores empresas que lidam com o humor e que sabem transformar o ‘boca a boca’ e as redes sociais em ferramentas de divulgação que vão além do investimento financeiro publicitário em mídias OOH. Isso demonstra que o fenômeno de Stranger Things não nasceu somente de algo orgânico, mas de uma estratégia bem consolidada por parte da Netflix”, explica PJ Brandão, mestre em comunicação, professor universitário e criador da página HQ Sem Roteiro.

Apesar de não haver dados oficiais, grupos de pesquisa como a Symphony Technology Group estimam que, nos primeiros 35 dias, a série teve cerca de 14,07 milhões de adultos entre 18 e 49 anos nos EUA. Já o site Cultura Analítica, nos primeiros 16 dias, angariou um público de 500 mil pessoas, o que ajudou a consolidar a série como um fenômeno cultural.

Capítulo Dois: O Papel da Nostalgia

É inegável que apelo nostálgico foi um dos principais motores do fenômeno “Stranger Things”. A série criou uma ponte afetiva com o público ao recriar o imaginário dos anos 1980, a partir da estética visual, do design de produção, da trilha sonora sintetizada e da estrutura narrativa remete a obras clássicas de Stephen King, Steven Spielberg, John Carpenter e George Lucas.

Entretanto, a série vai além ao trabalhar a nostalgia não apenas como referências, mas como linguagem narrativa. Ao combinar elementos visuais e narrativos clássicos com uma trama de ritmo cinematográfico contemporâneo, Stranger Things conseguiu ao mesmo tempo despertar lembranças em quem viveu a época, no caso dos membros da Geração X, e criar familiaridade em novos públicos, como os Millenials e a Geração Z.

“É importante saber que os protagonistas serem crianças faz uma diferença no papel da nostalgia. A criança, por si só, é o ser nostálgico por excelência da fase adulta. Os adultos sonham e pensam em voltar a ser criança, em uma época em que não existia responsabilidade ou que pelo menos o mundo podia estar ruim, mas as crianças eram resguardadas”, comenta PJ Brandão.

Esse equilíbrio entre homenagem e renovação transformou a nostalgia em estratégia, tornando-se não só elemento estético, mas força comercial. Essa combinação ajudou a impulsionar o ‘boca a boca’, fortalecer a identidade visual da série e criar uma comunidade engajada que reconhece na produção mais do que entretenimento, mas uma cápsula emocional de época.

“O storytelling nostálgico foi também absolutamente central para as campanhas que buscavam criar vínculos emocionais profundos com o público. No caso de Stranger Things, essa estratégia cria um equilíbrio delicado: evoca elementos marcantes da cultura pop de décadas anteriores sem reforçar os comportamentos ou valores problemáticos dessas épocas. Assim, o marketing utiliza a nostalgia como ferramenta de conexão e conforto, e não como um saudosismo cego. Isso permitiu que marcas, inclusive, se apropriassem desses símbolos do passado, mas de forma atualizada, segura e socialmente aceitável”, afirma o publicitário e executivo de contas da Mulato Comunicação, Erasmo Neto.

Capítulo Três: Uma marca que atravessa a telinha

À medida que a história de “Stranger Things” avançava ao longo das temporadas, o seu marketing escalava para escalas maiores, transformando a série em uma das maiores franquias culturais do streaming e um case global de licenciamento e brand experience. Se no começo a divulgação se apoiava em trailers enxutos, cartazes retrô e uma estratégia de “descoberta orgânica”, as temporadas seguintes ampliaram exponencialmente o escopo das ações.

“Cada nova temporada passou a ser tratada como um evento global, com ações multiplataforma, teasers virais, ativações em grandes cidades e um ecossistema transmídia cada vez mais complexo. Além disso, o marketing evoluiu para atender tanto ao público que cresceu junto com a série quanto às novas gerações que passaram a descobri-la, garantindo que Stranger Things continuasse relevante, massiva e conectada à cultura pop mesmo quase uma década após sua estreia”, explica Erasmo.

Segundo ele, o marketing deixou de ser apenas promocional e passou a operar como um ecossistema completo: experiências imersivas, ativações presenciais, collabs globais, produtos colecionáveis, crossovers com grandes redes e um uso calculado de nostalgia como linguagem comercial. No Brasil, a Parada Estranha – evento temático que contou com a presença do ator Jamie Campbell Bower e da apresentadora Xuxa Meneghelatraiu cerca de 12 mil pessoas para o Parque Ibirapuera, em São Paulo.

O merchandising também se tornou pilar da estratégia: para a temporada final, mais de 150 produtos oficiais chegaram ao mercado, de roupas vintage a brinquedos e objetos de decoração que espelham o universo visual dos anos 80. As colaborações comerciais também elevaram o patamar da série no mercado publicitário, com marcas brasileiras e globais aproveitando a repercussão da última temporada e lançando produtos tematizados com o visual da série, como C&A, Carmed, BIC, Oggi Sorvetes, iFood e McDonald’s.

No plano financeiro, o impacto é significativo. O product placement tornou-se uma fonte de valorização midiática. A quarta temporada gerou cerca de US$27,4 milhões em valor de exposição publicitária equivalente, segundo estimativas da YouGov. A Coca-Cola foi a marca com maior retorno, estimado em US$3,4 milhões. Outras empresas que surfaram nessa onda foram a Sony, a Reebok e a Lacoste. Para a quinta temporada, a análise da Parrot Analytic para a revista TIME apontou que a expectativa é que a 5ª temporada gere mais de US$2 bilhões em faturamento total.

Capítulo Quatro: Os caminhos para um futuro

Apesar do fim da história principal se desenrolar com o fim da quinta temporada, o universo de Stranger Things não permanecerá totalmente adormecido em termos de narrativa. E isso não acontece por acaso: trata-se de uma estratégia crossmedia cuidadosamente estruturada, que expande a mitologia de Hawkins para outros formatos e garante longevidade a uma franquia que, mesmo sem episódios inéditos, continua gerando interesse, novos públicos e novos produtos culturais.

Os romances, histórias em quadrinhos e publicações oficiais de “Stranger Things” funcionam como extensões diretas da narrativa principal, preenchendo lacunas temporais e aprofundando personagens que não tiveram o mesmo espaço na TV. Além disso, as publicações transformam a série em um ecossistema literário, fazendo os fãs migrem para outros formatos e criem novos pontos de entrada para a marca.

A peça “Stranger Things: The First Shadow” – que estreou em Londres e, atualmente, também está em Nova York – leva a expansão transmídia ao patamar da experiência ao vivo. Ao apresentar a história de origem de Vecna no teatro, os Irmão Duffer e a Netflix tornam a franquia um evento físico, criando uma vivência que a TV sozinha não consegue reproduzir, e sustentam o interesse emocional ao colocar o fã dentro do universo em escala real.

Por fim, a futura animação “Stranger Things: Histórias de 85” permite uma sobrevida a série, ao inseri-la dentro do cânone e trazer novas possibilidades estéticas e narrativas, que o formato em live action não permite. Além disso, o novo formato, atrai novos públicos, incluindo crianças e adolescentes que não acompanharam a série original devido a classificação indicativa mais alta, mantendo-a relevante para gerações futuras ao mesmo tempo que mantém próxima sua base de fãs mais antiga, tal qual as séries animadas de Star Wars lançadas nos últimos vinte anos.

“’Stranger Things’ demonstra que, quando há um orçamento robusto, uma equipe criativa consolidada e uma estratégia de comunicação bem alinhada, especialmente apoiada na nostalgia, é possível construir uma franquia transmídia praticamente inesgotável. A série ensina que o segredo está em criar um universo narrativo flexível o suficiente para se expandir por diferentes plataformas sem perder coerência, oferecendo sempre novos pontos de entrada para o público. É a combinação de planejamento, investimento e visão de longo prazo que transforma uma série em um fenômeno multiplataforma”, pontua Erasmo Neto.

“Stranger Things” mostrou ao longo de dez anos que sua força motriz não se encontra apenas em monstros megalomaníacos, estética retrô e no carisma de seus personagens. Seu trunfo maior é transformar uma história local de desaparecimento em um universo gigantesco, com coerência e sem perder as camadas emocionais que fazem o público ter interesse e maratonar os episódios. Ainda é cedo para dizer qual será o legado da série, mas uma coisa é certa: Hawkins e o Mundo Invertido ainda permanecerão por muito tempo dentro do imaginário coletivo.

“Talvez o maior legado que Stranger Things possa ter é a criação de novos artistas para Hollywood, como é o caso da Millie Bobby Brown, e o reposicionamento de outros que por muito tempo foram mal vistos, como é o caso da Winona Ryder”, afirma PJ Brandão. “Eu não sei dizer ainda qual a proporção do legado cultural da série agora, mas acredito que ele vai durar enquanto o marketing da nostalgia estiver em voga e outro tipo de zeitgeist não aparecer, mudando a forma como vemos marketing, cultura pop e política. ‘Stranger Things’ é um fenômeno de sua época, que talvez não atinja o mesmo status de clássico daqui a 50 anos, como outras obras que eu acredito que tenham essa possibilidade como ‘Sopranos’ e ‘Breaking Bad’. Mas eu também posso estar enganado, já que eu costumo errar bastante nas minhas previsões e também não tenho muito interesse em acertar”.

No mais, caros habitantes de Hawkins e do Mundo Invertido: aproveitem o fim temporário de uma história.