DENDÊGAME: O inusitado, o misturado e o Brasil na moda da Dendezeiro

Por Academia & Mercado

27/09/2023 14h49

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Ampla variedade de cores, novas texturas, outras formas, diversos estilos… A busca pelo novo, pelo inesperado e pelo inusitado é parte central do mercado de bens de consumo desde o século passado. Tudo isso está ligado à aceleração e à efemeridade do consumo que já estamos cansados de saber, em que a novidade e (muitas vezes) o choque aparecem como estratégias de atração e de venda. Porém, de tempos em tempos, da profusão de lançamentos emerge uma ação que se destaca no interior da lógica da novidade pela novidade. É o caso do DENDÊGAME, da marca soteropolitana Dendezeiro.

A campanha, que teve sua primeira peça divulgada em julho de 2023, tem como premissa a transformação de itens inusitados em roupas. Para isso, a marca abre em sua página do Instagram uma caixa de perguntas na qual os seguidores podem sugerir o que eles desejam ver fazendo parte da ação. Desde o lançamento, as escolhas foram: grama, bambu, abraço, filtro de barro, memória, espelho laranja, patapata, borracha (aquela vermelha e azul) e telefone público, o popular orelhão.

(Reprodução/Dendezeiro)

A hibridização de produtos, marcas e categorias não é estratégia nova no mercado. O universo dos cosméticos vem trabalhando nesse sentido com sucesso nos últimos anos. A nutrição dos produtos capilares que parecem alimentos, o aroma do hidratante de O Boticário em parceria com a marca de goma de mascar Bubbaloo ou ainda a colaboração da marca de hidrantes labiais Carmed com sabor de gomas de gelatina Fini.

São formas lúdicas, divertidas e muitas vezes nostálgicas de comunicar atributos e benefícios dos produtos ou das linhas. E essa ludicidade aparece logo no nome DENDÊGAME: trata-se de um jogo, uma brincadeira que constrói uma ponte entre a marca e seus consumidores e que tem como resultado não apenas a participação, mas a possibilidade de compra de um produto.

No universo da moda, a brincadeira com os objetos também está presente. Seja em uma perspectiva bastante pautada na ludicidade, como o caso da espanhola Loewe com o lançamento de um salto alto com um balão na iminência de estourar ou, posteriormente, de outro sapato com um conjunto de balões em látex sem inflar. Ou no choque do já exaustivamente discutido vestido feito de carne utilizado por Lady Gaga no MTV Video Music Awards, em 2010.

(Reprodução/Loewe)

Ou ainda em uma perspectiva que carrega o discurso da responsabilidade ambiental, como é o caso da designer estadunidense Nicole McLaughlin, que transforma itens costumeiramente guardados em casa em peças de roupas. Nesse contexto, o upcycling – como processo de reutilização de produtos, resíduos e peças para a criação de outros produtos – também pode ser visto como parte dessa discussão.

A Dendezeiro é uma marca de Salvador, na Bahia, que, segundo seu Instagram, surge da pergunta “por que a moda não consegue se comunicar com peles e corpos diferentes?”. A partir desse questionamento, há a proposição de uma moda agênero, com peças feitas com modelagens e amarrações que se adequam a diferentes tipos de corpos (o site também conta com um provador virtual, que caminha precisamente no sentido de oferecer uma moda que contempla mais do que os tamanhos hegemônicos).

Além disso, a marca se apresenta como uma homenagem ao nordeste brasileiro, que “desenvolve e fomenta a moda do mundo”. “Dendezeiro” reforça essa referência, carregando o nome de uma palmeira com fruto de cor vibrante e marcante, assim como o que a marca faz. Ao falarmos de uma região que, em sua diversidade, possui criatividade tão singular e exuberante, essa campanha existe em um contexto bastante frutífero.

A relação que a Dendezeiro constrói com os objetos no DENDÊGAME é diferente de outras iniciativas que vemos no mercado – e isso podemos observar apenas após esses meses do lançamento. Não se trata da mera hibridização da moda com esse ou com aquele objeto, mas sim de um diálogo da marca com a cultura material brasileira. E isso faz toda a diferença.

Os objetos transformados em moda pela marca estão profundamente arraigados em nossa cultura – e não apenas objetos, pois até o calor, o contato e a proximidade do abraço, tão relacionado ao Brasil, também aparecem nos lançamentos. Esses itens vão além de engendrar significados culturais (é difícil encontrar qualquer objeto que não os tenham), mas fazem parte e ajudam a construir quem somos como país; fazem parte de nossa identidade como brasileiros. E na pujante dificuldade de encontrarmos uma resposta para o que significa ser brasileiro atualmente, a retomada desses objetos simbólicos pode oferecer um caminho de conforto.

Isso significa que a nostalgia faz parte das peças propostas pela marca. Em um mundo de conexões distantes mediadas pela tecnologia: o abraço; na profusão de telas como espelhos e como comunicação: o espelho laranja e o orelhão; em textos escritos em smartphones e computadores: a borracha. Ou seja, indo além da dimensão cultural, os objetos carregam sentido de simplicidade, de um mundo menos afligido por tantos dos tensionamentos que se fazem presente em nosso cotidiano contemporâneo. 

E essa simplicidade não tem nada a ver com simploriedade. É uma simplicidade que se associa ao tempo e à literalidade dos objetos transformados em moda. Ou seja, não estamos falando de uma coleção que tem o Brasil e sua cultura material como inspiração, com alusão a seus elementos. Mas são coisas imediatamente identificáveis como o que são: uma bolsa de filtro de barro que parece um filtro de barro; um casaco de orelhão que tem cara de orelhão. A criatividade das produções está exatamente na compreensão da importância da literalidade nesse contexto; é apenas dela que surge o lúdico e o divertido das peças.

É a sensibilidade dessas dobras temporais e desses deslocamentos que faz do DENDÊGAME uma campanha cheia de significado. Nada mais brasileiro do que falar sobre e propor misturas, isso está em nós e em nossa constituição como povo. Mas não é qualquer mistura, é uma homenagem e um lembrete sobre o Brasil.

Do lado da marca, tem-se uma hibridização com a cultura material que tem profunda aderência à sua construção sígnica (nosso país e suas pessoas). No contexto, para além da valorização de Brasil que observamos em diversas frentes atualmente, propõe-se uma ludicidade, nostalgia e simplicidade em tempos muitas vezes confusos. Nos produtos, um deslumbre visual que carrega choque, diversão e o inusitado, tão próprios do universo da moda, mas com uma roupagem própria e fresca. Tudo isso sem deixar de lado que estamos falando de peças usáveis, que não apenas circulam nos ensaios fotográficos pelas redes sociais, mas que podem estar fisicamente presentes no cotidiano – o que deixa tudo ainda mais fascinante.

Por Rafael Orlandini

Publicitário, mestre em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-USP, especialista em Cultura Material & Consumo: perspectivas semiopsicanalíticas pela ECA-USP e pesquisador da Casa Semio.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.