Nos últimos anos, observamos um movimento contínuo de influenciadoras digitais lançando suas próprias marcas de bens de consumo, com o universo da maquiagem ocupando um espaço importante nessa dinâmica; Bianca Andrade com a Boca Rosa Beauty, Virginia Fonseca com a WePink, Karen Bachini com a homônima Karen Bachini Beauty e, a mais recente, Mari Saad com a Mascavo. Todas foram imersas em uma dinâmica de críticas e acaloradas discussões nas redes sociais, cada uma à sua moda e particularidade.
A trajetória em que uma pessoa vai de produtora de conteúdos na internet para empreendedora de bens de consumo não é recente e nem inaugurada por essas figuras. Bruna Tavares, por exemplo, ainda antes da existência do que chamamos hoje de influenciadores digitais, era blogueira de maquiagem desde 2009 e, em 2016, lançou sua primeira linha própria. Fora do Brasil os casos também são abundantes, Kylie Jenner com a Kylie Cosmetica ou Hailey Bieber com sua marca de skincare Rhode, para citar duas de grande visibilidade nesse crescente universo.
No Brasil, a relação dessas empreendedoras com marcas de maquiagem também não foi inaugural com seus lançamentos próprios. Todas elas carregam uma trajetória de associação com outras marcas para lançamento de linhas com seus nomes. Algo nada incomum no universo das celebridades e, mais recentemente, dos influenciadores digitais: as collabs pontuais nas marcas de moda com cantores (Bad Bunny x Adidas, Billie Eilish x Nike – dois exemplos recentes de uma longa tradição), mas também as linhas completas, como é o caso de Electrolux e Rita Lobo para eletroeletrônicos.
Há, porém, uma transformação radical entre essas formas de relação com os bens de consumo. A presença das influenciadoras nas marcas de maquiagem funcionava principalmente em uma dimensão comunicacional. Havia possibilidades de lançamentos de produtos específicos? Sim. Mas o maior potencial está na articulação da expertise e qualidade da marca no âmbito produtivo, com a chancela, circulação e experiência da influenciadora. Uma junção de significados simbólicos (excelência, sofisticação, refinamento etc.) e concretos (produtos e seus usos).
No entanto, fundar uma marca coloca essas pessoas em uma outra lógica, como parte do sistema produtivo para além da comunicação. A expertise e a tradição das produtoras “tradicionais” de maquiagem existentes nas parcerias anteriores são perdidas, em detrimento de uma nova construção de significados que parte, inevitavelmente, da influenciadora em sua presença midiática.
Os fundadores e proprietários das marcas fazem parte de sua construção de sentidos. Ora de formas mais explicitadas – Luiza Trajano no Magalu –, ora mais indiretas – Elon Musk nas atuais críticas em relação ao X –, mas sempre ali presentes. Quando uma pessoa pública, altamente midiatizada e inserida nas redes sociais, lança uma marca, essa potência é intensificada.
É o caso dos influenciadores digitais, que antes de qualquer lançamento de produto, já são marcas de si próprios. A primeira construção é a de proximidade e familiaridade – são pessoas que se colocam como próximas do público, que compartilham suas vidas e levam uma convivência cotidiana, ainda que espetacularizada, junto a seus consumidores. Essa proximidade se articula à criação de desejo, à vontade de ter aquela vida, de viver aquelas experiências. Consumir influenciadoras é, de alguma maneira, estar inserido em seu mundo e em seu estilo de vida.
A segunda construção diz respeito ao conteúdo produzido. No caso das influenciadoras de maquiagem, trajetórias de testes de produtos, comentários sobre marcas, tutoriais de maquiagens, dicas de usos etc. Ou seja, elas constroem íntima afinidade com os produtos e inserção no mercado por meio do uso. Afinidade essa que colabora para criar parâmetros de qualidade, de ditar o que é bom e o que não é.
Ao passarem de influenciadoras digitais a proprietárias de marca, esses sentidos se transformam em expectativas. Uma vez que elas são responsáveis pela construção de um crivo de qualidade em seus vídeos, esse mesmo crivo é esperado em seus produtos. Espalhabilidade, cobertura, acabamento, textura do produto e textura na pele, cores, durabilidade… São diversas as dimensões que estão em jogo quando falamos em maquiagem. E isso pouco tem relação com o posicionamento ou preço da marca. Do premium ao popular, do caro ao barato, do simples ao rebuscado, cria-se a expectativa de produtos de alta qualidade devido a tudo aquilo que as fundadoras traziam em seus discursos.
E foi a quebra dessa expectativa que pautou parte da discussão no lançamento de algumas dessas marcas. Seja em termos funcionais da embalagem, seja em termos de produto, as críticas transbordaram das esferas da preferência e do gosto, e trouxeram apontamentos mais profundos como oxidação ou dissonância entre cor anunciada e cor real. Problemas com produtos acontecem no mercado, mas uma marca que nasce da expertise e do amplo uso de maquiagens não deveria surgir com complicações da ordem do mais fundamental.
A outra expectativa diz respeito à imersão dessas pessoas no universo da beleza e, principalmente, nas pautas discutidas em redes sociais. Uma das marcas foi sensível nesse sentido, lançando uma cartela de 50 tons de base, alinhando o discurso sobre diversidade com a concretude de produtos condizentes com a variedade de tons de pele existentes no Brasil. Nesse caso, há uma coerência com o mercado de beleza como um todo, que vem sendo atravessado pela busca pela inclusão – como O Boticário, por exemplo, que recentemente lançou um pincel articulado para facilitar o uso por pessoas com deficiência.
Por outro lado, recentemente e depois de muita antecipação, Mascavo foi colocada no mercado oferecendo quatro tons de contorno e dois de bronzer, com uma imediata reação (e vídeos de outras influenciadoras) sobre a incapacidade de essa quantidade restrita de variações dar conta das tonalidades de pele dos brasileiros. Esse rompimento de expectativa é ainda maior quando levamos em consideração o nome da marca, Mascavo – que remete a um açúcar mais escuro e, principalmente, a uma proximidade à cultura brasileira –, e à presença de pessoas negras retintas na comunicação da marca. Dias depois, Mari Saad, a dona da marca, publicou um vídeo pedindo desculpas e reforçando que outras tonalidades serão lançadas em breve.
As discussões acerca da exclusão e do racismo dessas ações vem sendo diversas e necessárias. Em termos de marca, ao lançar uma quantidade limitada de tonalidades, Mascavo fez uma escolha sobre seu público e seus tons de pele. Seja uma escolha respaldada por pesquisas ou não, há de se compreender que todas as marcas possuem uma dimensão relacional que transborda de seus compradores efetivos. E isso é verdadeiro para todas as marcas, elas estão em permanente contato com a cultura e com a sociedade. No caso das influenciadoras digitais e do quente mercado de maquiagens, mais do que verdadeira, a discussão sobre os lançamentos é esperada e faz parte de suas estratégias de publicização.
As relações das marcas com os consumidores, vistos aqui de maneira ampla, compradores ou não, são dialógicas. Ou seja: as reações e os efeitos de sentido provocados pelas marcas são responsáveis não só por impactar seus significados, mas também de suscitar revisões de seus produtos – do Brasil ao exterior, essas alterações vêm sendo recorrentes. O que devemos estar atentos é no quanto essas transformações são finas, de detalhes e pequenos ajustes, e o quanto são resultado de problemas e lapsos em dimensões que deveriam ser centrais, sendo remediados posteriormente pela presença da influenciadora com um discurso público.
O que está em jogo nessas dinâmicas é o papel que a influência digital vem ocupando não apenas na comunicação das marcas, mas também na criação de novas perspectivas. Existe pressão e expectativa, existe comparação entre influenciadoras e suas marcas e existe demanda por coerência entre o discurso e a oferta. Nesse conjunto de existências, tem-se o lançamento de marcas incompletas, com uma profusão de ‘em breve’ em seus sites, com posicionamentos destoantes daquilo que virou parte do mercado e da sociedade como um todo.
Sem deixar de reconhecer que são também diversas as construções positivas e potentes nessas novas marcas, vemos que da pressa para o lançamento à disputa egóica entre influenciadoras, existem regulares brechas deixadas abertas que vão do produto à comunicação. O que precisamos acompanhar é se a pessoalidade dessas influenciadoras e a proximidade construída com seus seguidores serão capazes de sobrepor o crivo que elas mesmo construíram em termos de qualidade e de responsabilidade nas marcas de maquiagem (os sinais são que sim).
A relação do mercado com os influenciadores digitais vem se dinamizando e revelando possibilidades e limitações. Esse episódio do universo da maquiagem é mais um que nos ajuda nesse entendimento. A força do desejo de identificação e de pertencimento de consumidores junto às influenciadoras já se mostrou rentável, em uma vigorosa potência comunicacional e afetiva. Junto a isso, os números de crescimento respaldam o quanto há permissividade de erros nesse contexto, ou melhor, o quanto as críticas e discursos digitais podem perder força quando confrontadas com a realidade concreta de cada pessoa, seus gastos, gostos e desejos.
Atualmente, embora as marcas de influenciadoras digitais permitam responsabilização mais direta pelo protagonismo da pessoa fundadora, elas são potentes em oferecer significados que atuam na subjetividade do consumidor, fazendo com que seus lapsos pouco pareçam ser capazes de sobrepor o simbólico que elas vendem. A pergunta que resta é: até quando?
Sobre Rafael Orlandini
Pesquisador da Casa Semio, mestre em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-USP e especialista em Cultura Material & Consumo: perspectivas semiopsicanalíticas pela ECA-USP.