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Inventando Anna, projetando identidades

Por Clotilde Perez

09/03/2022 08h00

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“Há um pouco de Anna em cada um de nós” é parte do argumento final da defesa de Anna Sorokin na dramatização do caso da golpista feita por Shonda Rhimes para Netflix. A série Inventando Anna (2022) conta a história da garota russa que foi para os Estados Unidos como uma rica herdeira alemã, transitou por anos entre a alta sociedade nova iorquina e acabou sendo julgada por tentativas de furto qualificado em primeiro, segundo e terceiro grau e por roubo de serviços. Mas o que fez Anna que pode nos levar a crer que há um pouco dela em cada um de nós?

“Essa história é totalmente verídica exceto pelas partes que foram completamente inventadas” é o disclaimer que aparece (com algumas variações) ao início de cada episódio da série. Um prelúdio indicando o embaralhamento entre o factual e o inventado, abrindo o caminho para uma série de reflexões sobre o viver contemporâneo, que nos permite (e incentiva) criar identidades e projetá-las midiaticamente. Projetar como exibir; mas projetar também elaborar um projeto, um processo intencional, uma construção alongada no tempo.

O universo digital oferece o ambiente perfeito para a construção de uma vida a partir dos comportamentos e valores escolhidos por cada um, soltos de qualquer amarra imposta pela concretude do universo físico. Não à toa vemos uma vertiginosa proliferação de diferentes aesthetics nas redes sociais. Da nostalgia de Old Money à vida bucólica do Cottagecore ou à intelectualidade do Dark/Light Academia… As roupas utilizadas por Anna em seu julgamento são outra manifestação desse movimento. Postadas nas redes sociais quase como um desfile de moda, tinham uma intencionalidade de criar ali uma versão bem definida da ré.

As identidades, dessa forma, passam a ser projetadas midiaticamente. Isto é, faz-se uso dos dispositivos tecnológicos-midiáticos para produção, consumo e circulação dessas identidades. Ainda que essas construções possam transbordar para a fisicalidade do mundo longe das redes, isso pouco importa. A identidade que mostro no feed do meu Instagram é tão real quanto a que habita em mim enquanto escrevo esse texto. Menos exclusão e mais coexistência.

Foi-se o tempo em que as pessoas eram determinadas unicamente por seu gênero, posição social ou família. Hoje estamos abertos à constante e permanente invenção e reinvenção. O antropólogo italiano Massimo Canevacci criou o termo “multivíduo” para dar conta da multiplicidade de “eus” que habita cada um de nós. Não mais indivíduos, com seu único “eu” indivisível, mas uma pluralidade de identidades dentro de nossos corpos subjetivos. Isso é viver no século XXI: interpretar papéis em contextos. Temos uma identidade para discussões controversas em um jantar em família, outra para o ambiente de trabalho ou para uma reunião entre amigos, e ainda outra existente nas redes sociais. Isso não significa que qualquer uma delas seja menos válida ou falaciosa; pelo contrário, elas juntas fazem de nós quem somos.

Shonda ilustra isso de forma bastante clara ao mostrar, em determinado momento, Anna olhando para seu celular com a tela quebrada em diversas partes. O aparelho como metonímia para todo o cenário midiático, revelando possibilidades de fragmentação identitária; todas existindo em conjunto mediadas pelo smartphone.

Nisso está parte do sucesso de séries como “Inventando Anna” e de nossa obsessão por acompanhar a vida alheia nas redes sociais. Há um fascínio inerente a essas identidades projetadas midiaticamente ao mesmo tempo que um mistério por termos acesso a apenas uma das dimensões das vidas que ali vemos.

A existência individual está menos orientada por uma essência ao mesmo tempo interior e etérea, e mais por um atravessamento da linguagem, das relações e da cultura. Por isso, e na soma de todas as identidades que habitam os multivíduos contemporâneos, temos um pouco de Anna em cada um de nós. Evidente que existem desdobramentos que não devem ser ignorados, como os de Sorokin, que ultrapassam os limites legais, ou outros casos extremos, que desencadeiam transtornos psíquicos, mas temos hoje a abertura e a possibilidade de nos inventar e reinventar a cada novo dia, sempre munidos de nossos consumos… Da cultura material, de arte, de produções cinematográficas, de publicidade e, como não poderia faltar, das redes sociais.

 

Rafael Orlandini

Publicitário, especialista em Cultura Material & Consumo, mestrando em Ciências da Comunicação pela ECA USP e pesquisador da Casa Semio.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.