Número de pessoas negras em cargos de gestão e liderança aumentou, mas caminho para a equidade racial ainda é longo
Produzido pela filial brasileira da consultoria Great Place To Work, o 28º Ranking das Melhores Empresas para Trabalhar no Brasil demonstrou que os cargos de gestão e liderança estão mais diversos, com o aumento significativo da presença de profissionais negros. Na gestão operacional, estes indivíduos ocupam 37% dos cargos, o que representa um aumento de 27% em relação ao ranking anterior. Já os cargos de média gerência e C-Level possuem, respectivamente, ocupação de 20% e 27%.
“O aumento de profissionais de grupos sub-representados em cargos de liderança reflete um trabalho consistente e alinhado às estratégias de longo prazo dessas organizações. Assim, esse crescimento é resultado de projetos estruturados e sólidos, ligados à estratégia de negócios”, explica Roberta Hummel, COO do GPTW Brasil. “Outro ponto relevante é que a pesquisa do GPTW é autodeclaratória, o que nos leva a pensar que, assim como ocorreu no censo do IBGE, mais pessoas têm se reconhecido e se declarado como parte desse grupo. Esse movimento é fruto de maior conscientização e da criação de ambientes mais acolhedores dentro das empresas, que refletem mudanças na sociedade como um todo”.
Diversidade e Representatividade
No cerne das mudanças sociais apontadas por Roberta Hummel, duas palavras se destacam e viram temas centrais das discussões: diversidade e representatividade. Mas, na prática, o que de fato significam essas palavras?
Diversidade refere-se à presença de uma variedade de características sociológicas como etnia, gênero, idade, orientação sexual, local de origem, habilidades motoras e cultura. Já a representatividade diz respeito a subjetividade e identidade de um grupo com um indivíduo que se integra a este grupo. Em um exemplo simples, a representatividade pode ser definida como um sentimento que um negro tem ao ver outro semelhante em uma posição de prestígio social.
“A representatividade é fundamental, para que outros profissionais negros, especialmente mulheres, enxerguem possibilidades e se sintam encorajadas a ocuparem cargos e espaço de destaque e a se permitirem”, aponta Suelene Lopes, Gerente Regional de RH da Solar Coca-Cola, uma mulher orgulhosa da própria negritude. “Já fui surpreendida por depoimentos de vários jovens que eu sou uma referência de possibilidade. Nesses momentos, você olha ao redor e tem um choque de realidade: que você é exceção de uma realidade social discrepante, e de forma direta e indireta responsável pela construção de uma sociedade menos desigual”.
Em um mundo mais consciente, o papel da representatividade não se restringe apenas aos profissionais negros. A consciência social também demanda das empresas uma cultura organizacional mais igualitária e que reflita a realidade da sociedade brasileira, majoritariamente negra, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entretanto, o que se ver nas organizações são quadros de gestão e liderança distantes daquilo que é esperado pelo consumidor consciente, com 60% dos cargos de gerência operacional, 76% dos cargos de média gerência e 70% dos cargos C-Level sendo ocupados por pessoas brancas.
“Nós vemos empresas mais conscientes do impacto que elas têm além dos muros da organização, e também é perceptível que, nos últimos anos, mais organizações estão se posicionando como cidadãs ativas, entendendo o seu papel na transformação da sociedade. No entanto, a grande maioria das empresas ainda não reconhece sua responsabilidade nesse processo e não só não exerce seu papel como agente de transformação, como muitas vezes, tristemente, nega esta responsabilidade”, pontua Roberta Hummel.
Os desafios para a ascensão social de pessoas negras
Ao revisar a história brasileira, qualquer indivíduo consegue apontar que este país foi construído por mãos negras. Nas fazendas, nas fábricas, nos comércios, homens e mulheres de pela retinta foram colocados em posição de serventia e submissão com a validação das instituições públicas e a desumanização por parte da Igreja Católica. E, apesar de ter sido “acabada” pelas mãos da Filha do Imperador, a escravidão criou raízes profundas e sedimentou um problema que ainda reverbera nos tempos atuais: o racismo estrutural.
Para explicar o termo de uma maneira mais simples, precisamos voltar para 2012, quando o Grupo de Trabalho da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Afrodescendentes visitou o Brasil durante dez dias e reuniu-se com representantes da sociedade civil e com líderes comunitários de favelas e quilombos. Em comunicado à imprensa brasileira, o grupo da ONU constatou as imensas desigualdades entre negros e brancos em relação ao acesso à educação, à Justiça e aos serviços públicos. Além disso, o racismo no Brasil estaria atrelado diretamente as estruturas de poder, o que define o racismo estrutural.
“Certamente, as oportunidades são muito menores. Se você nasce na periferia ou em comunidades distantes dos centros urbanos, as adversidades se tornam ainda mais desafiadoras. A falta de uma família estruturada, conviver em ambientes insalubres sem saneamento básico e as dificuldades para ter uma alimentação adequada impactam diretamente na trajetória de ascensão. Essa é a realidade de muitos; quando analisamos a etnia dos dados, percebemos que a maioria das pessoas negras vive em situação de vulnerabilidade”, explica Michelle Maciel, Gestora Executiva da Casa de Saberes Cego Aderaldo.
“Falta oportunidade e incentivo na educação de forma geral, o que compromete a qualificação profissional. A falta de referências também é uma barreira para o crescimento profissional, as oportunidades são restritas e isso exige uma superação constante para ocupar espaços e ser notado”, complementa Suelene Lopes.
Engana-se quem acredita que as estruturas de poder brasileiras estão resumidas apenas às Instituições Públicas. Os meios de comunicação e o setor privado também são envolvidos pela herança racista deixada pelos tempos coloniais do Brasil. Segundo o núcleo Núcleo de Estudos Raciais do Insper (NERI), o salário médio de um trabalhador negro é 42% menor que o de colaboradores brancos em 2024, em em posições com as maiores jornadas de trabalho.
“O acesso de pessoas negras em espaços de gestão e aquelas verdadeiramente aliadas a movimentos antirracistas pode trazer mudanças gradativas, mas ainda estamos longe dessa transformação completa no pensamento coletivo. Trabalhamos mais duro, recebemos menos e nos esforçamos o triplo”, enfatiza Michelle Maciel.
Apesar das posições privilegiadas, líderes negros não estão livres do racismo estrutural nas culturas organizacionais. Um reflexo direto da problemática no cotidiano destes indivíduos é a Síndrome do Impostor, que gera dúvidas sobre suas próprias competências e afeta diretamente a autoestima. Essas dúvidas, entretanto, não são exclusivas de sentimentos internos, mas também estão presentes nos corredores das empresas, em frases que podem até parecer afirmativas, mas carregam consigo um resquício de preconceito racial.
“Já enfrentei várias situações onde minha presença causou estranheza e curiosidade pelo lugar que eu estava ocupando. Muitas vezes, eu já ouvi comentários que eu devia ser muito competente para estar onde eu estava”, relata Suelene Lopes. “A vida profissional exigiu mais de mim, para superar expectativas de forma constante, buscar conhecimento e me impor diante das barreiras encontradas. Aprendi muito cedo a não deixar os outros me apequenarem e a buscar estratégias para ser notada e respeitada profissionalmente.”
“Esse tipo de comportamento ainda é comum. Logo que assumi a gestão da Casa foi um grande desafio. Por exemplo, instituições enviavam ofícios em nome do antigo gestor mesmo após eu me apresentar como nova gestora; referiam-se a colaboradores não negros como gestores e frequentemente não se dirigiam a mim nas reuniões. O primeiro ano foi cansativo devido a essas situações até eu conseguir me posicionar firmemente. Isso gera desgaste emocional e impacta na autoestima; você fica em constante estado de alerta”, pontua Michelle Maciel.
Inclusão, inovação e produtividade
Assim como Suelene e Michelle, Alexandre Morais é um dos poucos profissionais negros em uma posição de gestão. Há seis anos, ele exerce o cargo de Gerente de Produção de Placas da ArcelorMittal Pecém, onde lidera cerca de 280 pessoas. No cargo, o profissional relata que vivencia um mix de desafio, realização e gratidão e que carrega consigo uma responsabilidade social por exercer sua atual função. Entretanto, para além da representatividade, Alexandre afirma que as lideranças negras também trazem consigo outro papel importante dentro do setor privado: a inovação.
“A liderança negra, em função da sua ancestralidade, consegue contribuir com perspectivas diferentes, inovadoras, que geram possibilidades de evolução concretas nos mais variados segmentos e dimensões. Vejo a capacidade da liderança negra construir, na linguagem atual, “prompts disruptivos”, que promovem saltos de progresso significativos, sem perder o equilíbrio de garantir a sustentabilidade do presente. Outro ponto importante é a contribuição da gestão negra na ampliação do pensamento crítico, que é um dos principais fundamentos para a evolução da sociedade”, pontua ele.
Além da inovação, a inclusão de pessoas negras também contribui com o aumento da produtividade. De acordo com o levantamento produzido pela ID_BR (Instituto Identidades do Brasil) sobre o impacto da diversidade no mercado de trabalho, para cada 10% de aumento na diversidade étnico racial, observou-se um incremento de quase 4% na produtividade das empresas. A inclusão também ajuda a melhorar os ambientes de trabalho, declinar os turnovers e ajuda a compor uma cultura organizacional mais diversa.
“A empresa que abraça a alteridade e entende como isso é estratégico para a sua visão de mundo e de negócio, constrói um ambiente colaborativo com diversas perspectivas e visões de mundo que engrandecem as decisões de negócio e provocam a inovação por todos. Em um mundo veloz e cheio de desafios, a capacidade de reunir olhares diversos é um diferencial competitivo, mas também um sinal de maturidade organizacional. A diversidade enriquece não apenas o ambiente de trabalho, mas a forma como a empresa se conecta com a sociedade”, aponta Roberta Hummel.
“A cartilha ESG inserida no início deste século evidencia a importância das empresas implementarem políticas de compliance que não permitam comportamentos racistas, desenvolvam programas estruturados de mentorias e que discutam claramente a diversidade e inclusão. Além disso, é essencial criar indicadores de progresso e prestar contas publicamente. Em resumo, como já ocorre na ArcelorMittal, é essencial investir em uma cultura organizacional que combata o racismo e promova a diversidade e inclusão“, complementa Alexandre Morais.
Equidade Racial
Equidade racial refere-se à igualdade de oportunidades por meio do fortalecimento e do empoderamento de pessoas negras. Mas para que a igualdade exista, a inclusão não é suficiente.
É preciso ver, ouvir, dar protagonismo. É preciso dar oportunidades e reconhecer que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 é válido além do que está escrito. É preciso mudar a forma de pensar, de agir, de enxergar. E notar que o racismo estrutural ainda é uma das engrenagens que movem as estruturas de poder do Brasil.
Erros só são corrigidos quando são reconhecidos. E o reconhecimento de qualquer forma de preconceito é o primeiro passo para que se haja o combate e a construção da igualdade como uma cultura inerente de todo brasileiro.