Quando o discurso não condiz com a prática
Quando empresas erguem painéis com missão, valores e propósito, a intenção é sinalizar ao mercado e à equipe o que elas dizem ser. Contudo, o risco começa quando esses compromissos “ficam só no papel”. Para Luciana Lancerotti, consultora e palestrante na área de Marketing com práticas sustentáveis, “ter missão, valores e propósito claros é algo que toda empresa, independentemente do tamanho, precisa ter como ponto de partida”.
“Pouca gente fala, mas um dos maiores riscos está dentro de casa: colaboradores que não entendem ou não sabem como traduzir esse discurso no dia a dia. Quantas pessoas, ao entrarem em uma organização, recebem de fato um treinamento que conecta propósito com a sua área e com o impacto que cada um pode gerar? Quando isso não acontece, a pressão por resultados assume o controle”, destaca Lancerotti.
A especialista ainda aponta que uma empresa pode até comunicar uma visão inspiradora, mas no dia a dia o time entregará apenas o que é cobrado, não o que é coerente com aquele discurso. “Esse é o risco mais imediato: perder a credibilidade. E credibilidade, uma vez abalada, leva tempo para reconstruir, tanto com os colaboradores quanto com os clientes”, ressaltou.
Propósito de fachada
O episódio do “propósito de fachada” não é apenas um problema de comunicação, mas pode ser considerado como “uma armadilha” que corrói posicionamento e confiança. Luciana Lancerotti aponta que o erro mais comum no universo corporativo é confundir propósito com campanhas de marketing.
Quando a empresa usa esse discurso só como ferramenta de imagem, sem que esteja conectado às decisões estratégicas, à cultura e à forma de operar, ela cai na armadilha do ‘propósito de fachada’.” A consequência, ela explica, é que valores que deveriam consolidar identidade e atrair engajamento passam a soar vazios e, nesse cenário, é muito mais eficaz ter poucas ações consistentes e alinhadas com a identidade da empresa do que tentar mostrar engajamento em várias frentes de forma superficial.
“Isso compromete diretamente o posicionamento, pois os valores parecem corrompidos, a confiança se perde e qualquer narrativa de marca soa vazia. Em gestão e marketing, o maior risco é achar que quantidade substitui coerência”, disse.
Para gestores e responsáveis por marcas, o diagnóstico pode ser direto. Uma vez que “no fim, propósito verdadeiro não é sobre falar mais, é sobre fazer melhor, e garantir que cada gesto esteja de fato conectado ao que a empresa acredita e entrega.”
Discurso e prática
A fim de que os discursos se tornem práticos, a solução não reside em slogans mais criativos, mas em práticas cotidianas que tornem o propósito operacionalmente relevante, é o que destaca a especialista, ao enumerar ações de mudança. Para Lancerotti, propósito não pode ser um quadro na parede, ele precisa estar vivo na cultura e no dia a dia da empresa. “Na minha visão, algumas práticas fazem a diferença. A primeira é clareza: todo colaborador precisa entender qual é o propósito da organização e como ele se conecta com o seu trabalho. Isso exige treinamento, comunicação simples e exemplos concretos”, falou.
Em segundo lugar, vem a consistência. “Quem tenta abraçar todos os temas acaba não conseguindo sustentar nenhum. Sempre recomendo que as empresas escolham um ou dois pilares que façam sentido para o seu segmento, tamanho e momento. O importante é atuar com profundidade e coerência, porque juntamente com a consistência, esses substantivos formam os pilares que evitam o propósito de fachada”, detalha.
Por fim, Luciana destaca a ritualização como o terceiro pilar. “É essencial criar práticas que tragam o propósito para as decisões do dia a dia. Algo simples, como abrir reuniões lembrando missão e valores, ou colocar esse filtro na análise de uma escolha estratégica, ajuda a manter o time conectado ao que importa mesmo diante da pressão por resultados”, ressalta a especialista, e ainda acrescenta que quando propósito é tratado como critério de decisão e não como peça de comunicação, ele se integra de fato à cultura e à operação.
Experiência
Luciana Lancerotti, que hoje atua como consultora e ministra treinamentos sob o guarda-chuva do que chama de “O Marketing do Cuidado”, descreve um método pessoal que sintetiza essa busca por coerência, uma vez que a prática custa menos do que parece quando incorporada à rotina. Em empresas onde propósito é critério de decisão, os efeitos se refletem em comportamento dos times, retenção, e, potencialmente, na percepção externa da marca.
“O foco não está no discurso bonito, mas na coerência possível dentro de um mundo consumista, acelerado e cheio de decisões de curto prazo. Criei para mim mesma um lema diário: a filosofia do pensamento circular, de onde vem, para onde vai e qual é o impacto. Nem sempre consigo fazer a escolha ideal, mas consigo fazer a escolha mais consciente possível naquele momento. E isso, para mim, já é sustentabilidade humana na prática. É o que me permite, no fim do dia, deitar a cabeça no travesseiro de forma mais leve”, descreveu.
Por outro lado, quando discurso e prática se divorciam, o custo manifesta-se em perda de credibilidade interna e externa, em desgaste de imagem e em esforços dispendiosos de reposicionamento. O desafio, portanto, não é apenas comunicar um valor intangível, mas desenhar os instrumentos para que ele seja vivido. Ou seja, treinamentos que conectem propósito a tarefas, decisões estratégicas que passem pelo “filtro” do valor declarado, e rituais que lembrem permanentemente a todos por que a organização existe. É nesse espaço, entre o que se diz e o que se faz, que se mede a resistência de uma marca ao tempo e às crises.
