Nossas relações com a cultura material

Publicado em

03/04/2024 10h33

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Nossas relações com o mundo se estabelece, em grande medida, pela mediação dos objetos. Desde tempos imemoriais, buscamos nos fragmentos das cosias, não apenas entender suas funções, mas também inferir as relações simbólicas e afetivas encarnadas nesses objetivos, perceptíveis pelos índices impressos nas materialidades, design, cor, locais de uso, ocasião, formas de armazenamento e tantos outros sinais.

Da Arqueologia, passando pela Antropologia e pela Semiótica, a cultura material transborda a funcionalidade e nos coloca em conexão com nossos valores e modos de vida mais significativos. Nós ligamos aos objetos a partir de suas qualidades que são perceptíveis pelos nossos sentidos. As qualidades das coisas estimulam nossos sentidos afetando nossos sentimentos, gerando emoções; aliás, este é o princípio explicativo da primeiridade em Peirce, semioticista americano de fins do século XIX, que estabeleceu as bases da semiótica, concebida como uma lógica, um jeito de pensar.

Além das críticas materialistas rasas, a cultura material promove relações, não apenas entre nós e elas, mas medeiam relações entre nós humanos, como acontece com os presentes (a escolha e o ato de dar e receber) ou mesmo com os souvenirs entregues após uma viagem como lembrança; com os animais, com o mundo das plantas e com o mundo espiritual (infinitas mediações materiais foram e são criadas) e imaginativo.

Assim, podemos compreender que as nossas relações com as coisas, objetos, produtos, mercadorias, bens – cada termo carrega suas camadas de significado, mas guardando a materialidade como signo comum – acontecem em 3 caminhos fundamentais: 1) estético-afetiva; 2) funcional-utilitária e 3) cultural-simbólica. Cada um deles com natureza, territórios sígnicos e mediações distintas, mas que ainda assim, podem dialogar em processos de articulação e crescimento, ou seja, na produção, consumo e circulação de novos significados em semiose ilimitada.

Construímos relações estético-afetivas com obras de arte, livros, itens de decoração, móveis, louças, souvenires, roupas, joias, acessórios e tantos outros objetos que fazem parte do nosso cotidiano e com os quais estabelecemos familiaridade. Em síntese são materialidades (e imaterialidades também), que nos agradam, provocam bem-estar e deleite, confortam, promovem fruição e transcendência pelo prazer que são capazes de gerar, quer na contemplação, quer no uso ou na simples certeza de ter. São estéticos porque são admiráveis. São afetivos porque nos fazem bem.

Também construímos relações funcional-utilitárias com os objetos. Exemplos clássicos são os instrumentos de natureza variada, de medição, aos de navegação e cirúrgicos. As ferramentas utilizadas em variados ofícios, as armas de todos os tipos, peças e componentes e os utensílios domésticos, absolutamente cotidianos e que nos acompanham por toda a vida, são ótimos exemplos. Os aparelhos médicos e hospitalares e as próteses também estão aqui incluídos. E o que há em comum entre todos esses exemplos é a objetividade esperada a partir da função de cada um.

Foram pensados e aperfeiçoados a partir de demandas do homem e suas relações na espécie, com a cultura e com a natureza. Atendem a necessidades relacionadas a alimentação, manejo, bem-estar, cura, vida e morte. Ainda que os usos possam ser reconfigurados ou mesmo desvirtuados, a funcionalidade é dada pelo material de que é feito, pelo design que o constituí e pelas técnicas de funcionamento que incorporam. As tecnologias de produção, incialmente artesanais, agora são industriais e informatizadas garantindo, como potencialidade, ainda maior racionalidade e eficiência quanto aos usos e consumos desses objetos.


Já as relações cultural-simbólicas são aquelas estabelecidas arbitrariamente e que se banham da cultura para se constituírem signicamente. Objetos litúrgicos, de devoção e de cultos, como taças, velas, ânforas, estolas, mantos, coroas etc., fazem parte deste eixo. Os ex-votos, relíquias (inclusive partes de corpos humanos, ossos, pele etc.) e assemelhados que só existem como consequência dos significados simbólicos, portanto, arbitrários, que atribuímos a eles, como é o caso do Santo Sudário ou de dezenas de fragmentos da cruz de Cristo espalhados pelo mundo, que movimentam milhões de pessoas e de dinheiro em peregrinações e visitas a espaços “sagrados”.

Mas, há também os objetos de marca, como os promocionais, por exemplo, que atendem a esta dimensão simbólica (como toda a marca) e até mesmo alguns produtos podem ser simbólicos, ainda que na origem carreguem a natureza da funcionalidade.

Organizar nossas relações com as coisas a partir dos 3 caminhos aqui apresentados é uma forma de sistematizar o entendimento a partir de critérios que expressam significados, mas, evidentemente, há objetos que transitam de um eixo ao outro ao longo do tempo e quando pensamos na variável tempo, praticamente todos os objetos carregam a potencialidade de se tornarem simbólicos, ou seja, representantes de uma época, de um estilo de vida, de um determinado padrão de gosto, de uma pessoa etc.

Há objetos de comungam de 2 ou mais eixos, podem ser estéticos e funcionais, como é o caso de inúmeras marcas de produtos para o lar, posicionados exatamente nesta perspectiva – são úteis (funcionais) e lindos (estéticos). Também podem ser pensados como utilitários e que assumem camadas estéticas e simbólicas, como é o caso do espremedor de frutas dourado criado pelo designer Philippe Starck, que era comercializado com o seguinte aviso na etiqueta “Não utilizar para espremer frutas. Danifica o material”.

O bom humor do designer vinha acompanhado do significado simbólico e estético desejado por ele e transmitido com graça aos clientes. Não era um espremedor de frutas, mas sim um objeto de deleite aos sentidos.

Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.