Análise

O que Ainda Estou Aqui e a conquista de Fernanda Torres significam para a atual indústria cultural do Brasil

Por Lucas Abreu

06/01/2025 11h22

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Atriz foi a grande vencedora do Globo de Ouro pela sua representação de Eunice Paiva, em um filme que fala sobre ausência, incertezas e memórias de tempos obscuros

Em 1999, o Brasil teve a oportunidade de ser representado no Globo de Ouro em duas categorias. Central do Brasil e Fernanda Montenegro foram indicados nas categorias Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz em Filme de Drama, respectivamente. O longa dirigido por Walter Salles conquistou sua estatueta, entretanto Fernanda Montenegro não obteve a mesma sorte e observou o troféu de sua categoria ir para as mãos de Cate Blanchett. As imagens daquela noite (como também as da cerimônia do Oscar, que ocorreu semanas depois) ainda provocam certo ressentimento ao brasileiro amante da 7ª arte.

Discurso de Fernanda Montenegro na cerimônia do Globo de Ouro, em 1999, após a vitória de Central do Brasil como Melhor Filme Internacional

25 anos depois, Walter Salles apresenta ao mundo Ainda Estou Aqui. O filme, baseado na obra homônima de Marcelo Rubens Paiva, retrata o drama vivenciado por Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres (a filha de Montenegro), quando seu marido, o deputado Rubens Paiva, fora abduzido pelos oficiais da Ditadura Militar. Se em Central do Brasil, Salles tenta construir a identidade brasileira moderna durante o período de resgate do Cinema Nacional, em Ainda Estou Aqui, ele aproveitou-se da maturidade que o mercado atingiu para tentar resgatar a memória coletiva de um tempo onde a violência, a opressão e a escuridão permeavam o país.

O êxito de Salles em abordar temas tão sensíveis e a atuação poderosa de Fernanda Torres fizeram o audiovisual brasileiro não só se destacar dentro de casa, como também mundialmente. Ainda Estou Aqui e sua principal atriz foram aclamados pela crítica especializada e indicados ao Globo de Ouro de 2025, que ocorreu no primeiro domingo do ano, em Los Angeles.

Imagem promocional do filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello / Reprodução

O Brasil assistiu atento a uma espécie de remake dos acontecimentos de 1999, em um clima parecido com uma final de Copa do Mundo. Houve revolta quando o francês Emília Perez ganhou a categoria de Melhor Filme Estrangeiro, mas a felicidade foi maior quando Fernanda Torres consagrou-se como a primeira atriz brasileira a receber uma estatueta do Globo de Ouro, reparando historicamente sua mãe e demonstrando a potência que os artistas nacionais possuem em relação aos figurões de Hollywood.

É importante ressaltar que Ainda Estou Aqui também caiu nas graças do público, atraindo mais de 3 milhões de espectadores e se tornando o quinto filme de maior bilheteria nacional em 2024, com R$ 62,7 milhões arrecadados. Paralelamente, O Auto da Compadecida 2, que estreou recentemente, levou mais de 1 milhão de pessoas ao cinema e arrecadou mais de R$ 20 milhões em apenas cinco dias. Os valores demonstram que o setor cultural brasileiro não se resume apenas a uma expressão da brasilidade, mas também é uma indústria que contribui ativamente para a economia nacional.

Selton Mello e Matheus Nachtergaele como Chicó e João Grilo em cena do filme O Auto da Compadecida 2, dirigido por Guel Arraes e Flávia Lacerda e produzido pela Conspiração e H2O Produções / Reprodução

Segundo dados do Observatório Itaú Cultural, a economia da cultura e das indústrias criativas (ECIC) representou 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB) de 2020, o que equivale a uma movimentação de R$ 230,14 bilhões. Além disso, o mesmo levantamento apontou que, em 2022, o setor gerou 308,7 mil novos postos de trabalho em comparação com 2021. Ao todo, foram 7,4 milhões de empregos formais e informais, o que equivale a 7% do total dos trabalhadores da economia brasileira. O audiovisual, por si só, arrecadou R$ 220 milhões, segundo dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine), incluindo, além da produção de filmes para o cinema, séries, novelas, videoclipes e anúncios publicitários.

A vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro talvez possa ser o princípio de um novo momento para o audiovisual brasileiro, onde o público se atenta mais ao que está sendo produzido em sua pátria, e em gêneros não abrangem tantas salas de cinema. Entretanto, para a construção de uma indústria cultural tão potente e diversa quanto às internacionais, é preciso que as empresas patrocinadoras tenham a noção de que a cultura importa e é benéfica para a economia, não sendo usada apenas como um recurso para ter descontos fiscais, mas como uma ferramenta poderosa para seus setores de marketing e publicidade.

Quem sabe dessa forma, a gente possa ver mais Fernandas, mais Walters, mais Taíses, mais Seltons, mais Guels, mais Suassunas, mais Paulos Gustavos e outros tantos brasileiros alçando vôos para além das fronteiras nacionais. No mais, fiquemos atentos ao Oscar que se aproxima.