No especial sobre empreendedorismo feminino, o Nosso Meio expõe a realidade das mulheres negras e dos seus negócios no Brasil
Na Rua Tebas do bairro Siqueira, na periferia de Fortaleza, há um duplex com uma placa laranja onde está escrito RicBi Salgados. A parte de baixo é composta por um salão de uma lanchonete, onde há um balcão expositor dos mais variados tipos de salgadinhos: coxinhas, bolinhas de queijo, joelhos mistos, esfirras de carne etc. Na parte de cima, fica a cozinha, onde uma mulher negra faz as iguarias. Ela também é mãe, esposa e empreendedora. Seu nome é Maria da Conceição Lima, mas todo mundo a conhece como “Pequena”, devido a sua baixa estatura, de pouco mais de 1,55m.
Pequena, entretanto, não foi empreendedora a vida toda. Ela começou a trabalhar na área da saúde, logo depois de terminar o curso técnico em enfermagem. No tempo livre, cuidava da casa, dos filhos e do marido. Cozinheira de mão cheia, gostava de fazer quitutes para a família. Foi no aniversário de um ano de seu afilhado, que surgiu a primeira fagulha do seu empreendimento.
“Eu sempre fui muito enxerida, e inventei de fazer os salgadinhos do aniversário de um ano do meu afilhado”, ela conta. “Naquele dia, eu fui muito elogiada. Até que chegou uma conhecida minha que me perguntou: ‘será que você consegue fazer pra mim 300 salgadinhos?’, e eu respondi: ‘consigo sim!’, e foi assim que eu comecei a trabalhar com salgados, há doze anos”.
Durante dois anos, Pequena atuou informalmente no ramo dos salgadinhos de festa. Entretanto, ela nunca deixou de lado o desejo de se profissionalizar. Na época, ela se inscreveu em um programa de capacitação para mulheres que desejavam empreender, o Mulheres Guerreiras, realizado pelo Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). E, com o dinheiro que tinha na poupança e o programa Crediamigo do Banco do Nordeste, conseguiu investir num maquinário e ter o CNPJ da RicBi Salgados.
Pequena se tornou parte do quadro de empreendedoras brasileiras. Segundo uma pesquisa realizada pelo SEBRAE em 2021, 47% das mulheres que empreendem no Brasil são negras.
“Houve um aumento significativo na escolaridade de mulheres negras de 2016 para cá, como também um aumento no percentual de mulheres que estão empreendendo. A mulher negra acabou aumentando sua participação em diversos ambientes, principalmente em papeis de liderança. Essas mulheres, entretanto, tem dificuldades em achar empregos formais e que tenham rendas satisfatórias, por isso o empreendedorismo é buscado para incrementar a renda delas e fazê-las ter uma posição de destaque”, explica a articuladora da Escola de Negócios do Sebrae/CE, Mônica Arruda.
Uma pesquisa mais recente, realizada pelo Instituto Rede Mulher Empreendedora em 2023 e chamada de Empreendedoras e Seus Negócios 2024, complementa o que Mônica Arruda afirma. De acordo com o estudo, 44% das mulheres pretas e pardas empreendedoras possuem ensino superior, já o incremento na renda foi citado por 39% delas. Além disso, 48% das entrevistadas apontou que a independência financeira também foi um fator determinante para empreender.
Apesar da expressividade dos números supracitado, as mulheres negras enfrentam desafios maiores que mulheres brancas. Enquanto 36% das mulheres brancas faturam cerca de R$ 2 mil reais com seus empreendimentos, esta realidade atinge metade das empreendedoras negras. Além disso, o percentual de mulheres negras endividadas é 7% maior que o de mulheres brancas, com 52% e 45%, respectivamente.
“O governo pode apoiar estas mulheres através de políticas públicas que criem uma rede apoio que desenvolva a capacidade delas por meio das atividades, por meio de programas, por meio de oportunidades que ajudem-nas a colocar suas ideias em prática”, afirma Mônica Arruda. “Além disso, é importante que a sociedade reconheça esses talentos do empreendedorismo feminino, consumindo e privilegiando essas iniciativas. Hoje, já existem coletivos de afroempreendedorismo que se unem para trabalhar em conjunto em feiras e eventos, colocando seus negócios com suas características culturais no mercado”.
Além das barreiras relacionadas aos incentivos financeiros, mulheres negras também enfrentam desafios complexos: o preconceito de gênero e o preconceito racial, que impactam diretamente na autoestima e no faturamento. Apesar de nunca ter sofrido preconceito racial, Pequena já foi vítima de machismo por parte dos seus funcionários, que duvidaram da sua posição como gestora em um momento de crise que a RicBi passou.
“Eu tive duas perdas muito grandes na minha vida. A primeira foi a do meu filho Matheus, que eu tive que parar por uma semana pra me recuperar do baque. A segunda foi a do meu marido Ricardo, que nessa eu até pensei em desistir do negócio. Eu estava muito fragilizada, porque o Ricardo era uma coluna sólida que eu tinha pra sustentar o meu negócio, que, de repente, desmoronou. E, assim, eu era a pessoa da cozinha, eu gostava de botar a mão na massa, enquanto ele ficava com essa parte mais burocrática. Quando ele se foi, eu tive que tomar a frente disso, e os meus funcionários na época duvidaram de mim, porque segundo eles ‘mulher não dá conta’. Mas isso é bobagem, nós mulheres damos conta. Nossa vida pode estar aos trancos e barrancos, mas a gente dá conta”, ela relata.
“O machismo e o racismo são barreiras que muitas vezes fazem com que a mulher empreendedora não se sinta capaz de vencer. Mas paulatinamente, as mulheres têm vencido e ocupando cada vez mais espaços na sociedade, empreendendo mais… A gente não pode negar que essas barreiras existam, mas também existe uma luta, existe um trabalho feito com grupos de apoio, onde essas mulheres conseguem vencer e dar continuidade aos seus trabalhos”, complementa Mônica.
Com a partida de Ricardo, Pequena teve que reformular o a RicBi Salgados. Ela dispensou seus funcionário, que eram compostos por entregadores, e passou a atuar no segmento dos buffets móveis e das lanchonetes que vendem salgados a R$ 1,00. Com a mudança, Pequena perdeu quase 30% de seus clientes, mas os que se mantiveram foram fidelizados e garantiram o sustento do negócio nos anos seguintes. Felizmente, não estava sozinha, sua filha Sabrina lhe deu suporte, principalmente na parte do marketing, área que Pequena confessa ainda não ter muita prática. E, no meio tempo, ela encontrou um novo amor e um parceiro de negócio, o companheiro Erisson.
“Deus me tirou uma coluna, mas ele colocou outra tão forte quanto no lugar. É muito bom contar com o apoio dele e da minha família, e isso me motiva a seguir com a RicBi”, enfatiza
Pensando no futuro, Pequena tem o sonho de abrir mais uma unidade da RicBi Salgados. Atualmente, ela pesquisa por locais na região do Grande Bom Jardim, próximo a escolas e ruas movimentadas, onde possa angariar novos clientes. Já a longo prazo, a empreendedora quer seguir trabalhando firme e deixar um legado sólido para ser herdado por sua filha Sabrina.
“Eu trabalhei e trabalho muito pelos meus filhos. Daqui a 10 anos, eu vou ter 61 anos. Eu quero seguir trabalhando firme, mas quero também deixar o negócio pra minha filha, se for da vontade dela, é claro. Se não for, também não tem problema, afinal o importante é seguir em frente, sempre!”, afirma Pequena.
“Para todo negócio é essencial, é essencial ter um planejamento bem feito, uma estratégia bem definida, um bom produto, a inovação constante e trazer elementos que realmente diferenciam o seu produto no mercado, esse é o fator chave para qualquer empreendimento. Também é preciso ter a mentalidade empreendedora, que é aquela mentalidade da pessoa que tem autoconfiança, que busca informação, que busca ter uma rede de contato, de networking, que busca excelência em tudo que faz”, explica Mônica.