O ambiente doméstico passou a ser o principal (e talvez o único) cenário cotidiano de parte das pessoas no decorrer dos últimos meses. A casa assumiu funções que antes se espalhavam pelas ruas das cidade e, com elas, prestamos mais atenção aos objetos que nos rodeiam. Decorações, móveis, utensílios de cozinha e itens de escritório… Reparamos na importância de toda essa vida material ao nosso redor. Porém mesmo antes, ela sempre esteve lá.
Essa é uma das grandes características dos objetos: são tidos como dados, familiares, quase invisíveis, mas estão constantemente orientando nossas ações, direcionando nosso ser-no-mundo e colaborando para construir nossas identidades e subjetividades. Os objetos nos fazem e habitam em nós.
Isso acontece porque as coisas são porosas. Elas absorvem os contextos pelos quais passam e depois os transpiram para nós, despejando esse acúmulo de significados, suas biografias. Sejam em objetos comprados, herdados ou recebidos como presentes, novos ou usados, essas histórias de vida são transformadas por sucessivos rituais, que colocam os sentidos em circulação e fazem com que cheguem até nós. A origem de tudo isso está, grande parte das vezes, em uma marca, que se plasma na matéria e se faz presente em todo esse complexo processo.
A própria origem das marcas está pautada na dimensão física. Brand, em inglês, tem sua raiz etimológica em queimar (ou marcar com fogo). E foi na materialidade que as marcas primeiro fizeram seus registros; nos produtos que eram por elas queimadas. Ainda desprovidas da carga simbólica que carregam hoje, elas tinham a função, desde a Antiguidade, de identificar a origem, de deixar marcado na perenidade da matéria quem havia produzido determinado objeto.
A evolução do contexto socioprodutivo foi colaborando para a transformação dos objetos de marca, abrindo um leque de possibilidades. Novos materiais, novas situações de comercialização e novos sentidos. Não mais um design funcional para os produtos, mas uma lógica sensível-emocional. Produtos com apelo estético que trazem brilho aos olhos pela publicidade e designs que passam a ser capazes de significar marcas.
Já as embalagens são transformadas em um comercial relâmpago nas gôndolas dos autosserviços a partir da década de 1950. Não apenas proteger, mas seduzir, atrair e informar. O instante da percepção significa tudo e essas materialidades incorporam valores sociais e temas de importância para a marca e para as pessoas. Sua presença no ambiente doméstico passa a também ser estendida por processos de colecionismo, reutilização e ressignificação, por exemplo.
Os objetos promocionais aparecem como outra instância dessa dimensão física. Novos itens que, carregando a logotipia das marcas, começam a integrar o dia a dia do consumidor. Mas para além dos objetos utilitários, como taças e copos que acompanham garrafas de bebidas alcóolicas, as décadas de 1980 e 90 abrigaram uma outra materialidade das marcas, mais complexa e com outras camadas de sentidos: as mascotes. Como totens, elas vêm carregadas de afetividade, são meio humanas, meio divinas, e capazes de representar as marcas enquanto permitem os consumidores vivenciarem o mito por elas construídos.
Há ainda os licenciamentos. Coca-Cola é um dos grandes exemplos de como uma marca que nasce como uma bebida pode ser encarnada em roupas, móveis, objetos decorativos e funcionais. Mas há casos mais próximos, como Elefante no contexto brasileiro. São marcas com grande presença no tecido cultural, que aumentam sua pregnância ao se espalharem por outras arenas da vida cotidiana; novos produtos e objetos para além de sua origem.
Esse breve percurso nos aponta alguns aspectos que devemos levar em consideração ao pensar nas materialidades produzidas pelas marcas. Em primeiro lugar há uma dimensão afetiva, às vezes contida no próprio objeto, como é o caso das mascotes, mas principalmente fruto das experiências do consumidor e dos rituais que circunscrevem essa materialidade. Depositamos afetos em produtos pelo esforço para comprá-los ou ao associá-los a pessoas. Nos apegamos a embalagens por estratégias de reconhecimento ou colecionismos (quem não ficou eufórico para encontrar uma lata de Coca-Cola com seu nome nela gravado?). Ou criamos memórias a partir dos contextos dos objetos promocionais, como é o caso dos copos de festivais de música, que carregam neles as experiências e encontros vividos naquele evento.
A segunda dimensão é a utilitária. Alguns objetos têm usos funcionais no cotidiano. Não são apenas decorativos, mas se integram às atividades diárias e passam a inserir a marca em nossas vivências sem que muitas vezes percebamos. Afinal, são “apenas” objetos. Mas estão lá, direcionando nossas ações e atuando em nossas mentes. Observamos aos montes canecas, canetas e ecobags impressas com logotipos. Mas esses objetos têm sentido para a marca? Ou atuam somente em uma lógica promocional? Quais possibilidades são capazes de representar valores e trabalhar em conjunto com outras ações de seu ecossistema publicitário?
Chegamos enfim à dimensão simbólica dessa vida material. Aos objetos eminentemente semióticos, capazes de construir significados e gerar novas associações nas mentes das pessoas. Algumas marcas nativas digitais vêm trabalhando essa dimensão com precisão. É o caso da Tidal, serviço de streaming de música lançado pelo marido de Beyoncé, que imprimiu sua marca em pochetes para oferecer como brindes aos frequentadores de um evento realizado em São Paulo. Urbanidade, juventude e contemporaneidade são algumas das associações possíveis para essa ação. Conexões que fazem sentido para seus consumidores e também para a marca, que passa a não existir apenas como aplicativo de celular, mas a habitar os guarda-roupas das pessoas e as ruas da cidade.
Ou ainda McDonald’s que, no cenário de limitação à circulação imposto pela pandemia, lança diversas ações batizadas de “Méqui em casa”. Entre elas, a venda de outros produtos para além de alimentos: almofadas em forma de hamburguer, meias e cobertores com as expressividades da marca estão entre alguns deles. A campanha transborda da efemeridade do momento da refeição e estende sua habitação no ambiente doméstico. Menos atenção àquilo que o produto oferece, mas conexões da marca com o aconchego do lar e conforto de estar em casa.
Os objetos nos fazem como indivíduos e sujeitos, guiam nossas ações e carregam as histórias de seus contextos. Eles são potentes suportes midiáticos que, como signos utilitários, fazem do uso uma forma de inserir e reiterar a marca no cotidiano. Mas podem ir além. Em sua capacidade de evocar memórias e criar novas associações, eles se transformam em expressivos signos de marca, que vão do produto e embalagem às diversas possibilidades concebidas nas mentes de nossos criativos. Eles constroem afetividades e se conectam a valores sociais. Os caminhos são infinitos e nos revelam a possibilidade de elaboração de uma cultura material que faça sentido para as marcas e que transmita potentes significados para as pessoas.
Rafael Orlandini
Publicitário formado pela ECA-USP e especialista em Cultura Material & Consumo: perspectivas semiopsicanalíticas pela ECA-USP, mestrando do PPGCOM-USP e analista de pesquisa da Casa Semio.