Ensejar estratégias de UX a uma indústria que insiste em promover produtos “sem tabaco” equivale a redesenhar o hábito do café descafeinado: a estrutura do gesto permanece, mas o vínculo simbólico desloca-se. Nesta semana, receberei cinquenta dólares por participar da segunda sessão de um estudo anunciado em um cartaz afixado no 61C Café, em Squirrel Hill. Os dólares da sessão da semana passada, sozinhos, já me pagariam duas carteiras de cigarro.
Ignoro se havia financiamento da Philip Morris. A sessão remota, porém, examinava exatamente o problema que me interessa: como reorganizar o circuito de devoluções em produtos concebidos para operar uma ruptura controlada, quase uma destruição criativa aplicada ao consumo.
A Carnegie Mellon University sempre habitou meu horizonte intelectual. Na dissertação de mestrado orientada por Jawdat Abu-El-Haj, comparei o entusiasmo empreendedor de Fortaleza aos apelos de reinvenção econômica que já se anunciavam nos Estados Unidos, naquela época, eu a observava com desejo silencioso, certo de que um dia estaria ali. Acompanhei, então, o projeto Google Moon em Bakery Square com a mesma curiosidade de quem pressente uma futura vizinhança intelectual. Hoje, por caminhos inesperados, encontro-me mais próximo da CMU, e mais atento ao que a fenomenologia pode oferecer
Recordei esses vínculos enquanto testava um formulário de triagem médica por IA. O exercício evocou imediatamente o que aprendi nos Smoking Studies do Laboratório de Behavioral Science. Trabalhando com Qualtrics, apreendi a fluidez dos instrumentos que antecipam contradições e impedem que o participante se disperse. Cada pergunta funciona como gesto de cuidado: ninguém seleciona Next para “seguir adiante”, sem embargo, seleciona para ser compreendido. Quando esse motivo antecipado não encontra reconhecimento, o dado já surge debilitado. Nos estudos de tabagismo, o Qualtrics devolvia sinais breves e precisos. O que digo é:
Inconsistências detectadas, caminhos reajustados, respostas moduladas. Essas devoluções estabilizavam a experiência e reduziam a ansiedade, restituindo continuidade ao participante. O mesmo vale para sistemas de IA na saúde: registrar um sintoma não basta; é preciso devolver presença. Um simples “estou processando seu relato” reinsere o cuidado no ciclo e preserva a inteligibilidade da ação.
O aprendizado decisivo, contudo, emergiu da observação dos momentos de hesitação, abandono e reformulação. Cada pausa longa ou retorno à pergunta anterior abria uma janela fenomenológica para o sentido da ação. Compreendi ali que nenhum instrumento amadurece sem escutar o que a pessoa devolve, sem ajustar o seu próprio fluxo à maneira como a ação se desenrola.
É precisamente nesse ponto que três princípios, todos coerentes com o modo como a própria Philip Morris descreve seus processos de pesquisa, avaliação e melhoria contínua, se tornam decisivos para qualquer desenho de experiência que pretenda reorganizar um hábito.
Primeiro, compreender a expectativa antecipada do usuário: a PMI afirma que sua inovação depende de “rigorous scientific assessments” que incluem estudos de “behavior and perception”, isto é, entender o que as pessoas esperam, como percebem o produto e em que contexto o utilizam
Segundo, garantir respostas claras e orientadoras: os produtos smoke-free são submetidos a ciclos de testes que geram “data to evaluate aerosol chemistry, toxicology, clinical outcomes and user interaction”, evidenciando a necessidade de retorno imediato sobre o funcionamento e a segurança percebida
Terceiro, ajustar o produto ao que o uso real devolve: a PMI explicita que a evolução de seus dispositivos resulta de “continuous development and validation” apoiada em métricas de adoção, abandono, preferências e padrões de utilização, exatamente o tipo de iteração que permite identificar atritos, confirmar acertos e alinhar o desenho do sistema ao que as pessoas efetivamente fazem, e não apenas ao que se supõe que farão.
Essa lição adquire pertinência especial diante da transição estratégica da Philip Morris. A empresa desloca o foco do tabaco combustível para dispositivos eletrônicos, tentando reconstruir um repertório sensorial que se dissolveu. Nesse movimento, o UX deixa de ser camada suplementar e converte-se em narrativa de substituição: uma sequência de microdevoluções que reduz a estranheza inicial e tenta estabilizar um gesto privado de sua gramática original. O desafio consiste em converter décadas de habituação corporal em um conjunto mínimo de sinais que restitua previsibilidade e evite o abandono precoce. Essa cadeia de retornos funciona como pedagogia silenciosa, uma reeducação da atenção, do paladar e do motivo que sustenta a ação.
Com a aproximação do inverno em Pittsburgh, minhas conversas com Michael Hanke tornaram-se mais frequentes. O eviterno mestre insiste em um ponto axial da fenomenologia social de Alfred Schutz: toda ação assenta em expectativas formadas pela articulação entre retensões e protensões. Mesmo sem empregar o termo feedback, Schutz descreve uma dinâmica interna de validação contínua que mantém o sentido em equilíbrio no fluxo da vida prática. Agimos orientados por um projeto; o resultado devolve um sinal; esse sinal realinha o sentido e prepara o passo seguinte.
Em Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt, Schutz demonstra que a vida social não constitui uma coleção de factos, mas uma textura de significados reconstruída continuamente pela comparação entre o que antecipamos e o que sucede. Até a tradução parcial The Phenomenology of the Social World preserva essa tese: compreender uma ação é compreender sua temporalidade interna, tal, como se ancora no passado vivido, se abre ao futuro antecipado e se corrige pelos efeitos que produz.
Nesse quadro, responsabilidade deixa de ser atributo genérico e torna-se responsividade ao retorno da própria ação. A fenomenologia da ação é, nesse sentido, uma fenomenologia da resposta.
Talvez por isso, ao aproximar a fenomenologia de Schutz dos experimentos da indústria do tabaco e das interfaces de IA na saúde, reencontro a mesma intuição: nenhum projeto, industrial, científico ou clínico, subsiste sem acolher o retorno do vivido. Uma tecnologia pode ordenar sinais e ajustar fluxos, mas só ganha sentido quando devolve ao sujeito a confirmação de que sua ação retornou. Por mais ambiciosas que sejam as reinvenções industriais, tudo continua condicionado ao gesto humano que inaugura o sentido. É nesse intervalo, discreto, recursivo, reincidente, que a experiência se renova e a inteligência revela seu caráter mais humano.
