Quando o silêncio fala mais alto: o perigo do Quiet Cracking nas organizações

Por Redação

10/09/2025 09h38

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No Brasil, é lei que os empregadores ofereçam medidas de apoio à saúde mental. A NR-1, atualizada em maio de 2025, obriga todas as empresas a identificarem e tratarem riscos psicossociais como parte da gestão de saúde e segurança no trabalho. Já a Lei 14.831/2024 instituiu o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental, destinado a organizações que adotam políticas estruturadas de bem-estar, combate ao assédio e programas de apoio psicológico.

Mas aqui está o ponto: lei não garante cultura. Regulamentos obrigam processos, mas não constroem confiança. Normas definem protocolos, mas não resgatam propósito. O alerta que trago vai além da legislação: trata do silêncio corrosivo que se infiltra nas organizações, invisível e devastador, e que nenhuma obrigatoriedade formal é capaz de resolver.

Depois do Quiet Quitting, que já abalou os alicerces do engajamento — e que muitas empresas sequer perceberam estar vivendo —, surge um estágio ainda mais devastador: o Quiet Cracking.

Quiet Quitting: resistência silenciosa

O Quiet Quitting é uma forma de resistência consciente e silenciosa. Surgiu como reação de autopreservação: profissionais que decidem “cumprir o contrato” e nada além disso. Não é preguiça, mas sobrevivência em ambientes onde reconhecimento é raro e sobrecarga é regra. Muitas vezes, o descaso — até inconsciente —, a ausência de retorno e a falta de atenção ao indivíduo levam ao esgotamento.

Profissionais de alta performance acabam silenciados por lideranças ausentes, pouco empáticas e incapazes de incentivar ideias, projetos ou novas metodologias. Gente talentosa que poderia ser estratégica permanece anos em funções rotineiras, sentindo-se cada vez mais impotente. A “lei do dono” — daquele que diz “estou aqui há mais tempo” ou daquele que ganhou relevância após um feito isolado — sufoca quem quer e pode contribuir. O resultado: a vontade de se calar torna-se maior que a insistência em falar sem ser ouvido.

E é importante deixar claro: estamos falando de profissionais relevantes, capacitados e preparados para suas funções. Pessoas que poderiam gerar impacto real, mas que acabam desperdiçadas pela falta de escuta, de incentivo e de visão estratégica das lideranças.

A Gallup revela que 50% da força de trabalho nos EUA já se enquadra nesse perfil. Globalmente, apenas 21% dos colaboradores estavam engajados em 2024 — a menor taxa da última década. O impacto é monumental: US$ 8,8 trilhões por ano em produtividade desperdiçada, cerca de 9% do PIB mundial. No Brasil, estudos apontam que 11,9% dos trabalhadores já aderiram ao Quiet Quitting, em sua maioria jovens de 25 a 34 anos, e 19,5% relatam sentir-se angustiados, sobrecarregados e desmotivados.

Quiet Cracking: a rachadura invisível

Se o Quiet Quitting é uma escolha, o Quiet Cracking é uma condição. Não há decisão consciente de reduzir esforços, mas uma erosão emocional progressiva, fruto de frustrações acumuladas, ausência de perspectivas e insegurança em relação ao futuro.

O colaborador permanece fisicamente presente, mas já se distanciou mentalmente, perdendo propósito e motivação. Segundo pesquisa da TalentLMS (2025), 54% dos profissionais já vivenciam algum grau de Quiet Cracking e 20% sentem isso frequentemente ou de forma constante. Os dados são alarmantes:

  • Embora 82% se sintam seguros no emprego atual, apenas 62% confiam em seu futuro na empresa;
  • Entre os que sofrem Quiet Cracking, somente 27% sentem que seus gestores os escutam;
  • 42% não receberam nenhum treinamento nos últimos 12 meses, e a ausência de aprendizado aumenta em 140% a chance de insegurança;
  • Esses profissionais são 68% menos propensos a se sentir reconhecidos;
  • 85% afirmam não receber retorno de seus líderes ou CEOs em projetos estratégicos;
  • 90% de colaboradores em alto nível hierárquico relatam se afastar de projetos não por questões financeiras, mas pelo descaso de suas lideranças diretas.

Os sintomas são traiçoeiros. O Quiet Quitting é visível: menos esforço extra, menos energia. Já o Quiet Cracking é quase imperceptível: o sorriso que se apaga, a fadiga constante, o silêncio em reuniões, a ausência em conversas estratégicas. Para o colaborador, isso se traduz em ansiedade, insônia e sensação de aprisionamento. Para a empresa, significa corrosão da cultura e perda invisível de talentos.

No Brasil, embora não haja levantamentos específicos ainda sobre o Quiet Cracking, os índices de Quiet Quitting (61,9%) e de desmotivação (59,5%) indicam que a rachadura já está instalada. Alta rotatividade, sobrecarga estrutural, falta de clareza sobre futuro, ausência de retorno das lideranças e trabalhos rotineiros sem contexto tornam nosso mercado fértil para essa epidemia silenciosa.

O antídoto exige coragem e maturidade

Não existem atalhos nem soluções cosméticas. O combate ao Quiet Cracking exige ação imediata de CEOs e lideranças de RH. Isso significa:

  • Escuta real: pesquisas anuais não bastam. É preciso adotar pulse surveys contínuos e conversas individuais com desdobramentos práticos;
  • Segurança psicológica: criar um ambiente onde opiniões possam ser expressas sem medo é condição básica para a confiança;
  • Perspectiva de futuro: colaboradores precisam enxergar trilhas claras de carreira e progressão. A falta de horizonte alimenta a rachadura;
  • Investimento em desenvolvimento: capacitação não é custo, é estratégia de sobrevivência. Sem aprendizado, cresce a desconexão;
  • Reconhecimento genuíno: mais do que bônus, engaja a validação sincera do esforço e da contribuição;
  • Gestão adulta: líderes capazes de dar direção, equilibrar cargas e valorizar pessoas são o maior recurso para impedir que o silêncio se transforme em ruptura.

E mais: diante do cenário desafiador que vivemos, as empresas precisam urgente de gente capaz de lidar com gente. Não apenas gestores de processos, mas profissionais preparados para promover a cultura, a voz, a cara e a essência da marca. É papel de um setor estruturado de Cultura e Pessoas sustentar a identidade organizacional, dar coerência ao discurso e transformar valores em práticas diárias.

E cabe aos CEOs seguirem essa cultura, dando exemplo e incentivando o progresso dos times. Não há mais espaço para “profissionais de resultados” que esmagam colegas, desrespeitam liderados e destroem culturas. A complexidade atual exige autenticidade, técnica e humanidade na mesma medida.

O alerta final

O Quiet Quitting foi o primeiro sinal. O Quiet Cracking é o colapso silencioso. Juntos, revelam a verdade incômoda: as organizações não estão apenas perdendo produtividade, estão perdendo pessoas, talentos e confiança. Se líderes não reagirem, a rachadura se tornará irreversível. Mas aqueles que tiverem coragem de escutar, reconhecer e reconstruir poderão transformar essa epidemia em um marco de renovação.

Há ainda um ponto crucial: muitos líderes ocupam cadeiras estratégicas sem, de fato, representarem os valores da organização. Até quando isso será sustentável? Essa reflexão não pode ser adiada — precisa acontecer agora. O silêncio dos colaboradores não é ausência de voz. É o som alto de uma confiança quebrada. Apenas uma liderança profissional, técnica e profundamente humana pode devolver sentido a esse eco — porque entregar resultados nunca pode significar ferir pessoas e  abandoná-las no meio do caminho.

Simone Moura
Fundadora da Ping Pong Estratégia e CMO da Medeiros Distribuidora & 365 Medeiros
Simone Moura é formada em comunicação social, especialista em branding, MBAs nas áreas de marketing, comportamento de consumo e neuro marketing, e cursos de especialização na Universidade de Harvard em disrupção e teorias jobs to be done. Mestre e Doutora em Comunicação e novas tecnologias pela Universidade do Minho, Portugal, e especialista em neurociência aplicada ao consumo Possui 30 anos de atuação profissional e já contribuiu para vários players de diversos segmentos como indústria, varejo, serviços e publicidade e propaganda. Simone tem vasta experiência em planejamento estratégico de comunicação com foco em propósito, posicionamento de mercado e gestão de branding. É embaixatriz da Ikigai Brasi. Fundou a Ping Pong Estratégia em 2010 e atua em todo o Brasil.