Por Claudinei Lopes Jr.*
Suzane Von Richthofen, Elize Matsunaga, Alexandre Nardoni, Anna Carolina Jatobá, além dos irmãos Cravinhos, Roger Abdelmassih e Sandrão são nomes que protagonizaram crimes que marcaram muitas brasileiras e brasileiros. Recentemente, essas personagens e seus casos se tornaram eventos midiáticos de longa duração e voltaram a figurar no imaginário coletivo e no cenário midiático brasileiro graças à produção audiovisual seriada Tremembé (Prime Video, 2025) cuja primeira temporada conta com cinco episódios que exploram o cotidiano em locais que se tornaram referências simbólicas na conjuntura jurídica e midiática nacional: os presídios masculino e feminino da cidade de Tremembé, no interior de São Paulo. Podemos dizer que a série se insere no gênero true crime brasileiro ao retomar e reconstituir casos criminais marcantes que chocaram o Brasil, porém, mais do que simplesmente relembrar e narrar crimes, hibridiza aspectos ficcionais ao dissecar como viviam as autoras e os autores desses delitos no cárcere.
Nesse sentido, vale destacar que a série Tremembé se baseia nos livros de Ulisses Campbell, jornalista, escritor e roteirista brasileiro que tem uma carreira dedicada a produzir livros biográficos de personalidades envolvidas em casos criminais notadamente midiáticos e de grande repercussão nacional. Logo, combinando os bastidores da vida carcerária e certa fidelidade aos acontecimentos reais, a produção audiovisual seriada oferece uma narrativa envolvente. E de fato, parece que essa conjunção se apresentou muito rentável, uma vez que o Prime Video informou que Tremembé desbancou Cangaço Novo (Prime Video, 2023) assumindo o posto de maior sucesso da plataforma de streaming no Brasil sendo a produção mais assistida, embora esses números exatos de horas assistidas não sejam divulgados pela plataforma de streaming. Para além disso, é válido dizer que no dia 21 de novembro de 2025, houve a confirmação da segunda temporada da série que promete abordar ainda o dia a dia de outras e outros detentos dos Presídios dos Famosos, como são conhecidas as penitenciárias da cidade de Tremembé.
Entretanto, a partir de um olhar mais crítico, a série Tremembé mobiliza tensões entre a ética da memória, a sensibilidade do público e o imperativo do consumo cultural ao emergir de uma zona ambígua entre entretenimento, denúncia social e fascínio mórbido. Por esse último viés, as presas e os presos, retratados na produção audiovisual em questão, adquirem um status de estrela, de celebridade dotado de capital simbólico que é intercambiado hoje com pessoas de diferentes gerações que conhecem a história e até aqueles que acompanharam o curso dos fatídicos crimes à medida que eles aconteciam.
Na esteira desse pensamento, vale recuperar proposições do sociólogo e filósofo Edgar Morin (1989, 2005) quando descreve o star system, ou sistema de estrela, em português, como um dispositivo que produz os olimpianos, sujeitos elevados a uma esfera mitológica, instaurados como exceções positivas. A construção de tais figuras são cuidadosamente construídas pela mídia por meio da espetacularização de biografias em que episódios específicos da trajetória de vida ganha contornos performático; pela mitificação da personalidade que se orienta pela atribuição de qualidades extraordinárias que vão além de características humanas reais; e pela própria identificação afetiva que concede que o público projete desejos, ideais e frustrações.
Ainda sob esse viés crítico, podemos compreender que muitos espectadores podem recusar essa leitura que preconiza uma posição célebre para essas figuras da vida real que cometeram crimes um tanto quanto brutais e ultrajantes. Em vez dessa interpretação que mostra certo grau de encanto e de atração, há a possibilidade de considerar que tais pessoas capazes de praticar crimes, como: homicídios com simulação de latrocínio, sequestro, esquartejamento e ocultação de cadáver, estupro e atentado violento ao pudor contra pessoas sedadas, sejam enquadradas como tipos monstruosos, encarnações do perigo, do excesso, do que deve ser contido. Aliás, enxergar as personagens da série Tremembé por esse ângulo nos aproxima do conceito foucaultiano de monstruosidade. Um monstro para Foucault (2013) não se resume a alguém que comete um crime; na verdade, a existência monstruosa é lida como inconsistência radical, anomalia moral, biológica ou social.
Os casos agrupados em Tremembé funcionam como ícones paradigmáticos de como os sistemas penal, midiático e de opinião pública se entrecruzam. Pela estética, pela narrativa e pelo estilo, a série gerencia mecanismos dos excessos, seja pela notoriedade adquirida ou pela violência dos crimes, atribuídos a pessoas condenadas que podem ser lidos como excepcionais: como celebridades e/ou como monstros. Em Tremembé, essa dualidade é performada pela fusão monstro-celebridade, um sujeito cuja visibilidade é tão intensa quanto a de um astro midiático, cujo sentido que lhe é atribuído moralmente é negativo e disciplinar, mas que é capaz de propiciar fascínio e repulsa simultaneamente.
Por fim, ao apresentar os bastidores e as trajetórias pessoais, Tremembé trabalha na fronteira entre ficcionalização e linguagem documental, convida o espectador a refletir sobre o modo como o Brasil julga, pune e consome narrativas criminais. Trata-se, portanto, de uma obra que não apenas documenta crimes, mas também analisa criticamente os mecanismos simbólicos e institucionais que fazem com que certos casos criminais concebam seus respectivos processos de investigação como media events (Hepp; Couldry, 2010). Cabe a nós, espectadores, decidirmos se tendemos a considerar essas personagens de Tremembé como celebridades ou como monstros.
Referências
HEPP, Andreas; COULDRY, Nick. Introduction: Media events in globalized media cultures. In: COULDRY, Nick; HEPP, Andreas; KROTZ, Friedrich (Ed.). Media events in a global age, p. 1-20. London and New York: Routledge, 2010.
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
MORIN, Edgar. As estrelas: mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo – neurose e necrose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005
Sobre o autor:
Doutorando em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (2023). Mestre em Média e Sociedade (2019) pelo Instituto Politécnico de Portalegre e bacharel em Comunicação Organizacional pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2020). Tem interesse em pesquisa na área de Comunicação, com ênfase nos assuntos referentes às narrativas ficcionais seriadas, Estudos de Gênero, Estudos Feministas, Estudos Queer e Estudos Decoloniais.
