Vale tudo no digital?

Por Redação

07/05/2025 10h29

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Por Carolina Ferraz, mestranda em Ciências da Comunicação pela ECA USP e pesquisadora do GESC3 – Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo

A população viu nos últimos meses as novelas brasileiras saindo das telas de televisão e encontrando outros dois espaços simultaneamente: a rua e as redes sociais, dialogando com uma geração de pessoas que tinha deixado o formato um pouco de lado.

O primeiro fenômeno foi originado por Beleza Fatal. Produção da HBO, a novela apresentou o conceito compacto com 1/3 dos costumeiros episódios, sem “barriga” e com atuações e um texto que ganharam as redes sociais. Apesar de hiperbólica e absurda para os padrões morais e éticos da vida no offline, a narrativa da influenciadora Lola, dona da clínica de estética LolaLand, representava perfeitamente o fenômeno dos influenciadores de lifestyle na contemporaneidade e o comportamento dos seus fãs. A personagem de Camila Pitanga ativou uma verdadeira fábrica de memes, virou fantasia de carnaval, ganhou watch parties nos principais clubes e festas e manteve-se por semanas entre os assuntos mais comentados das plataformas. Os Lolovers, antes fictícios, tornaram-se reais e eram um de nós.

Duas semanas após seu fim, a estreia da refilmagem de Vale Tudo pela Globo trouxe uma novidade. Apesar do texto muito próximo ao da versão original, Maria de Fátima Accioli agora é parte do Instagram e, em menos de 15 dias, acumulou 350 mil seguidores, com alto engajamento. Durante a novela, a personagem tira fotos e faz vídeos que são postados simultaneamente nas redes sociais da vida real. Nos comentários, pessoas comuns dividem espaço com artistas de grande prestígio como Taís Araujo e Iza, influenciadores como Diva Depressão e Leila Germano, chegando às instâncias institucionais e grandes marcas, como a prefeitura do Rio de Janeiro, Nubank, Motorola, Senai, Subway, Cenoura e Bronze… dentre outras dezenas.

É claro que a estratégia transmídia tanto da HBO quanto da Globo foi um acerto, mas o recurso não é novo. Em Dona do Pedaço, personagens já tinham seus espaços nas redes, mas nenhum acumulou tantos números quanto essas duas produções. O que mudou foi o tom do discurso do personagem, que evidenciou um fenômeno alastrado em nossos celulares: a existência do influenciador trambiqueiro. Presentes em todas as áreas, a categoria divulga desinformação, jogos de azar, discursos anticiência, cursos e produtos de procedência duvidosa e estão cada vez mais esbarrando em limites éticos e morais. As protagonistas, inclusive, são frequentemente comparadas nas redes a influenciadores do mundo real – muitos que figuram entre os que mais faturam nesse mercado.

As plataformas estimulam o conteúdo que gera engajamento e interação como nenhum outro, em uma lógica baseada em números, teorizada por Jenkins (2002), mas que atrai quem move essa engrenagem: os anunciantes.

A protagonista Lola fazia publis, vendia seus “produtinhos” e ostentava uma vida luxuosa nas redes. Mesmo quando estava em crise e aparecia chorando nas redes, seus números não paravam de crescer – o que Sibila (2016) defende como resultado da prática do “Show do eu”, composta pela espetacularização da intimidade em níveis cada vez mais profundos.

Maria de Fátima é cria desse universo. Desde muito cedo, a novela mostra a personagem consumindo o conteúdo de influenciadoras como a Lola, até que vende a casa da mãe para performar nas redes sociais. Hospedagens no Copacabana Palace e sacolas das principais marcas de luxo do mercado – muitas vezes emprestadas – performam um capital financeiro que não existe. Uma prática frequente no mercado de influenciadores, feito para mostrar um estilo de vida inexistente, para atrair publicidade, conceito apresentado por Karhawi (2020) como mercantilização da identidade.

Enquanto observa o número de seguidores crescer (agora no mundo da novela), Maria de Fátima vivencia o reflexo da economia creator que ainda tem como principal base de conteúdo – dentre os 2 milhões de criadores brasileiros – a monetização de postagens relacionadas a estilo de vida, segundo o relatório da Brunch em parceria com a Youpix e o levantamento da Influency, lançados recentemente.

É a livre negociação de acordos publicitários entre marcas e creators que caminha para a transformação da área em uma grande commodity, deixando de lado os criadores com limites éticos e a produção de conteúdo mais cuidadoso e profissional. Lembrando que, ao se aliar a uma marca, o influenciador tem reconhecimento e credibilidade atribuídos a si (Karhawi, 2020), retroalimentando a energia da engrenagem.

Se antes as marcas estavam preocupadas com quem carregava seu discurso nas revistas e comerciais tradicionais, as empresas hoje sustentam contratos com influenciadores que ludibriam seu consumidor, inclusive não sinalizando a publicidade e operando fora do regulamento estabelecido pelo Conar.

Segundo o mesmo relatório, os números de alcance ainda são as principais métricas para fechar um patrocínio e a reputação do criador e qualidade do conteúdo tornam-se secundários. Impera o narcisismo performático abordado por Chul Han (2012). O que nos faz levantar o questionamento: em um mercado que já tem mais de 10 anos, por que a publicidade ainda endossa o vale tudo nas redes?

Afinal, é a falta de organização, regulamentação e diretrizes profissionais entre plataformas, marcas e creators que abre espaço para o crescimento de Lolas e Marias de Fátima. Ora, já que aparentemente não conseguiremos nos livrar deles na realidade, que as influenciadoras fictícias nos façam rir, em vez de ter vontade de desligar os fios que ligam a rede mundial de computadores.

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Clotilde Perez
Professora universitária, pesquisadora e consultora
Clotilde Perez é professora universitária, pesquisadora, consultora e colunista brasileira, titular de semiótica e publicidade da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, concentrando seus estudos nas áreas da semiótica, comunicação, consumo e sociedade contemporânea. Fundadora da Casa Semio, primeiro e único instituto de pesquisa de mercado voltado à semiótica no Brasil, já tendo prestado consultoria nessa área para grandes empresas nacionais e internacionais, conjugando o pensamento científico às práticas de mercado. Apresenta palestras e seminários no Brasil e no mundo sobre semiótica, suas aplicações no mercado e diversos recortes temáticos em uma perspectiva latino-americana e brasileira em diálogo com os grandes movimentos globais.