Qualquer um que frequentasse uma agência de publicidade nos anos 70, 80 ou até mesmo 90 do século passado, perceberia: era um ambiente bastante interessante, de algum modo divertido e atraente. A pressão dos prazos curtos e o stress das grandes responsabilidades fora, agências eram espaços bonitos, agradáveis, sofisticados, cheios de vida, movimentados, animados, com pessoas de espírito jovem, criativas e com muitas referências.
Mas eram também lugares que precisam ser reconhecidos hoje como racistas, machistas, classistas e elitistas. Predominavam os homens, sobretudo nos cargos mais altos, a grande maioria composta por brancos, ricos ou de classe média. Vinham de boas escolas – os mais novos, dos ainda recentes cursos superiores de propaganda; os mais velhos, das redações dos jornais, das letras, da arquitetura ou das artes –, muitos falavam inglês – nem que fosse apenas para dizer briefing, rough e paste-up, em vez de resumo, rascunho e colagem –, gostavam de arte – quase sempre dos mesmos artistas, legitimados e institucionalizados por uma academia eurocêntrica –, apreciavam novidades e frequentavam lugares da moda – aqueles típicos do microcosmos dos grandes centros urbanos. E faziam propaganda para todo mundo.
Era o tempo da ‘publicidade para’, em que esse pequeníssimo extrato da sociedade se encarregava de dar voz às marcas e às empresas anunciantes, planejamento, criando e levando ao público peças publicitárias dos tipos mais variados, para os públicos mais diversos. Havia o target, inclusive, primo-irmão da segmentação e do posicionamento, emblemas de uma visão de mundo – que ainda persiste no mercado – em que pessoas de as ordens podem ser compreendidas a partir de uma pequena quantidade de características que possuam, confinadas em caixas imaginárias, para serem alimentadas docilmente por estratégias de marketing e ações de comunicação. E, mesmo que houvesse mulheres e pessoas pretas nas agências – a copa, a recepção e o estacionamento não contam –, todas elas só conseguiam estar ali, se estivessem devidamente integradas a essa visão de mundo predominante, em que uma elite social, política, econômica e cultural definia como seria e qual seria a propaganda feita para toda a população.
Depois vieram os tempos da ‘publicidade com’, aquela feita a partir do entendimento de que, se vamos falar com pretos, precisamos ter um preto na equipe. Se vamos vender absorventes, por que não aceitar umamulher no ‘time’? Se o cliente quer uma campanha para a semana do orgulho gay, não vale a pena incluir umhomossexual no projeto? Escorando-se inconscientemente no fato de que a preposição ‘com’ expressa adição, inclusão e presença de algo ‘extra’, diferente, ganhou força a ideia de se fazer publicidade compessoas que escapassem ao perfil-padrão predominante. Vieram os chamados comitês de diversidade – até então de caráter muito mais consultivo e transitório –, funcionando como um grupo de pessoas exóticas que deviam participar de alguns processos, conferindo às agências aquele mínimo de diversidade possível e desejável na época.
E muito por força de novas conformações socioculturais, que passaram a questionar o modelo de sociedade e economia vigente, vieram, de fora para dentro, dúvidas e críticas a respeito da representatividade na publicidade. Sem que essas questões chegassem de forma mais efetiva e célere ao chamado mercado publicitário – aos escritórios das grandes firmas, às empresas de mídia, às agências, especificamente –, ganhou força um pensamento crítico que, ao cotejar o imaginário projetado pela propaganda com a realidade social, só enxergando discrepâncias, passava a exigir novas formas de representação.
É chegado o tempo da ‘publicidade por’, aquela não mais feita para mulheres e pretos, também não mais produzidas com gays ou trans, mas aquela realizada por coletivos diversos, reunidos sob o signo da valorização da diferença e da busca pela igualdade, ricos no sentido pleno da palavra, conscientes dos desafios que isso significa e das responsabilidades que disso derivam. É errado achar que mulher preta cria para mulher preta, homem gay cria para homem gay e pobre cria para pobre. Pode ser até mais fácil pensar assim, mas tem-se aí um pensamento que, no fundo, segue a regra mais tradicional e conservadora, de que só pode haver diversidade no mercado publicitário se houver demanda econômica.
O desafio que se impõe atualmente, na era da ‘publicidade por’, passa por reconhecer a diversidade como um valor em si – não como um instrumento estratégico para se alcançar novos clientes ou vender mais. Passa por entender que o combate ao racismo, ao machismo e ao classismo – e a todos os tipos nefastos de ‘fobias’ – deve estar, sim, naquilo que a publicidade representa e apresenta ao público, mas também, e principalmente, nas engrenagens que a produzem. Deve-se, por exemplo, na hora de contratar, saber diferenciar o que são exigências técnicas do que são mecanismos de exclusão – o domínio do inglês e as ‘boas’ referências, por exemplo. Deve-se levar em conta que as instituições de ensino superior são aquelas que formam os publicitários – e muitas delas, sobretudo as públicas, já fazem seu papel, se abrindo ao incentivo à diversidade e procurando dar sua contribuição no sentido da reparação histórica –, mas que essa formação diz respeito também ao que vivem os estagiários e os jovens publicitários nas agências em que forem trabalhar.
Até o dia em que, sem comprometer o alto desempenho e a reconhecida qualidade da publicidade produzida no Brasil – mas sem esquecer que nada disso se conquista sem luta, sem combate e sem diálogo –, possamos ter um mercado efetivamente diverso. Sim, demográfica e estatisticamente especular à sociedade brasileira; mas, principalmente, capaz de expressar na sua criação e nos imaginários propostos os melhores valores de uma cultura que sempre foi – e deve ser cada vez mais – da ordem do sincrético, do ecumênico, do complexo, do ambíguo, do paradoxal, do mestiço e do misturado.
Bruno Pompeu
Publicitário formado pela ECA-USP, doutor e mestre em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-USP, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso) e dos cursos de publicidade da ECA-USP e da ESPM-SP. Sócio-fundador da Casa Semio. brupompeu@gmail.com